quinta-feira, 5 de dezembro de 2013




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O que Jesus Disse? O eu Jesus não disse? Quem mudou a Bíblia e porque

Bart D. Ehrman – Título original: Misquotig Jesus: The Story Behind Who Changed de Bible and Why

Tradução: Marcos Marcionilo– Prestígio Editora, 2006


 

Bart Ehrman é PhD em Teologia pela Princeton University of North Caroline, especialista em Novo Testamento, igreja primitiva, ortodoxia e heresia, manuscritos antigos e na vida de Jesus. Quando jovem, motivado pela pratica do Cristianismo e estudo da Bíblia, ingressou no Moody Bible Institute de Chicago e, após três anos de estudo da Bíblia, decidiu se formar em Teologia, na faculdade evangélica Wheaton College, onde após aprofundar seus estudos em relação aos textos bíblicos, foi paulatinamente se dando conta da quantidade de alterações que havia em relação aos textos das bíblias disponíveis e o texto disponível em grego.

 

Aprofundou seu conhecimento em línguas, para poder compreender melhor manuscritos antigos, e quanto mais estudava estes, mas notava que, contrariamente ao que a tradição prega, as palavras constantes na Bíblia estavam longe de ser inspiradas por Deus. Tais estudos o conduziram a um caminho completamente diverso daquele que ele inicialmente tinha planejado, quando ingressou no Moody, para se tornar um divulgador da Bíblia como muitos de seus amigos fizeram. Sua dedicação aos estudos dos textos antigos e o vasto conhecimento adquirido durante anos de pesquisas lhe renderam a alcunha de “a maior autoridade em Bíblia do mundo”.
 

Nesta obra composta de sete capítulos, Ehrman mostra de maneira didática todos os porquês das milhares de mudanças que os pesquisadores dos textos bíblicos identificaram desde o início do século XVII, quando começaram a surgir pessoas dispostas a buscar uma aproximação aos textos originais que compõem a Nova Aliança.

 

 No primeiro capítulo ele mostra que, assim como o Judaísmo, o Cristianismo também era uma religião do livro, apesar das características dos povos daquele tempo, principalmente dos Cristãos, que se tratavam em sua quase totalidade de pessoas analfabetas, mas cuja fé, com o passar dos anos, trouxe para a nova religião pessoas cultas que participaram da elaboração e disseminação dos ensinamentos de Jesus.

 

É ainda mostrada a produção dos mais diversos tipos de textos (Evangelhos, Cartas, Epístolas, Apocalipses, etc) que, para serem difundidos, dependiam do ofício de copistas.

 

Depois, no segundo capítulo, Ehrman ilustra como a falta de preparo dos primeiros copistas contribuiu desde os primórdios com a modificação dos textos originais, devido à disseminação destes pelo mundo Cristão, seja por incapacidade, cansaço, necessidade de combate daqueles que se julgavam ortodoxos contra conceitos considerados heréticos, etc.

 

É exemplificada também a inserção, por parte de copistas, de trechos inteiros que não constavam dos textos originais como, por exemplo, a passagem da mulher flagrada em adultério, onde é mostrado que tal passagem tem estilo de escrita completamente distinto do restante do evangelho onde se encontra e que a mesma não consta de diversos manuscritos antigos. Outros exemplos também são abordados neste capítulo.

 

No terceiro capítulo é mostrado como se chegou aos textos que dispomos atualmente pela atividade dos copistas profissionais, à partir do século IV, da elaboração do cânon sagrado, da criação da Vulgata Latina (até então os textos existentes utilizavam principalmente o grego mas, após a oficialização do Cristianismo como religião do Império Romano, exigiu-se a tradução dos textos para o latim).

 

Ele mostra também como foi o resgate dos textos mais antigos em grego e, com o advento da imprensa, já no sec. XVI, o surgimento dos primeiros pesquisadores das escrituras, bem como o princípio da identificação das falhas nos textos.

 

O quarto capítulo enfatiza a busca dos estudiosos pelos textos mais antigos possíveis, como consequência da quantidade de erros que começaram a ser mapeados pelos mesmos. São mostrados os trabalhos de alguns pesquisadores antigos e suas conclusões a respeito das milhares de alterações identificadas por estes.

 

No quinto capítulo, Ehrman apresenta uma técnica desenvolvida desde o princípio do sec. XVI, aprimorada pelos estudiosos das escrituras, que visa a avaliar se uma determinada passagem trata-se de um original ou trata-se de consequência de erros ou inserções – a Critica Textual. Tal técnica auxilia sobremaneira na clarificação a respeito de passagens polêmicas que constam (ou constaram) nas escrituras. Jesus sentia ira? Sentiu medo com a perspectiva do que enfrentaria no calvário? Sentiu-se abandonado por Deus na Cruz? Estas questões são avaliadas pela ótica da Crítica Textual, para se concluir a respeito do que provavelmente constava nos textos originalmente escritos, que evidentemente não são os textos que constam nas nossas Bíblias atuais.

 

Nos dois últimos capítulos, são mostrados exemplos de mudanças intencionais promovidas pelos copistas nos textos da Nova Aliança, seja porque estavam motivados por fatores teológicos, diante da necessidade de combate às heresias dos diversos Cristianismos existentes nos primeiros séculos, até a definição do cânon sagrado no sec. IV, seja porque motivados por elementos sociais, como a exclusão de referências à importância da mulher no culto das igrejas e conflitos com judeus e com pagãos.

 

Ehrman conclui o livro fazendo uma análise do que motivou tantas mudanças nos textos produzidos, mostrando que em grande parte tais mudanças se devem pela capacidade interpretativa do ser humano e que, em grande parte, tais mudanças para aqueles que as promoveram visavam realmente melhorar o texto. Não havia, portanto, a preocupação com a manutenção do texto original e muito menos com as consequências que tais mudanças provocariam para as gerações futuras, ou seja, a preocupação que motivou as mudanças sempre foi de momento, para garantir a manutenção da ortodoxia teológica em relação aos textos.

 

Enfatiza-se que, por se tratar de uma obra dos homens, até mesmo os autores foram responsáveis por modificações nos ensinamentos de Jesus, exatamente por serem humanos com necessidades e sentimentos.

 

Conclui-se de tudo o que é exposto no livro que não há como acreditar que as palavras contidas na Bíblia sejam inspiradas por Deus. Não se chega nem perto disso. O que temos hoje na Bíblia é um livro escrito por homens, alterado por homens, que é interpretado por homens e que, nestas interpretações, tiram conclusões das mais variadas formas. Porém, historicamente, os fatos não permitem que se creia na infalibilidade do que está escrito na Bíblia e tais fatos são chancelados em diversos momentos da história, por diversos ícones da Cristandade.
 
 
RESENHA: Bruno Fabiano de Sá Oliveira
 
Notas:
 

 

 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Resenha: Jesus - uma biografia revolucionária (John Dominic Crossan)






Titulo original: Jesus, uma Biografia Revolucionária
Crossan, John Dominic
Jesus: uma biografia revolucionária
Tradução de Julio Castanon Guimarães
Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995
220 páginas

Jesus: síntese de uma biografia revolucionária

Por Natali


 John Dominic Crossan tem as credenciais para ser considerado um dos maiores especialistas, do mundo, em Jesus histórico e cristianismo primitivo. Até o ano de 1995, ministrou estudos bíblicos na DePaul University, em Chicago. Atualmente, é professor emérito no departamento de estudos religiosos na mesma instituição. Nos últimos quarenta anos, ele publicou vinte e sete títulos sobre Jesus histórico e cristianismo primitivo. Entre os mais conhecidos, estão os seguintes livros: “O Jesus histórico - a vida de um camponês judeu do mediterrâneo”, “O nascimento do cristianismo”, “Em busca de Paulo”, “A última semana - um relato detalhado dos dias finais de Jesus”, que foi escrita em co-autoria com Marcus J.Borg e, “Jesus - uma biografia revolucionária”. 

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O livro Jesus - uma biografia revolucionária, obra a qual passarei a me referir, é descrito pelo próprio autor como uma versão mais popular e compacta do best seller “O Jesus histórico - a vida de um camponês judeu do mediterrâneo” e, por essa razão, mais direto, impactante e provocador de intermináveis debates e discussões sobre o tema. No entanto, como ressalta o próprio Crossan, o seu espírito de honestidade não se modificou de uma obra para outra. 

Aproveito-me do tema honestidade, mencionado por Crossan, para destacar que o que descreverei a seguir é uma síntese, a mais isenta possível, sobre o seu livro “Jesus - uma biografia revolucionária”. Como estudiosa do tema cristianismo e espiritismo, tenho algumas concordâncias e algumas discordâncias com o escritor. Porém, aqui, não as revelo, nem faço qualquer análise de sua respeitável obra. O meu intuito é apenas apresentar, nesse espaço, algumas de suas idéias.

O estudo acadêmico do Jesus histórico pode ser definido, de uma forma bem despretensiosa, como o que você teria visto e ouvido, se tivesse sido um observador mais ou menos neutro, durante as primeiras décadas do primeiro século. O Jesus histórico é distinto do Cristo confessional, porém não invalida a fé de qualquer religião.

No prólogo, Crossan inicia com um relato das dificuldades do estudo do Jesus histórico, uma vez que os evangelhos são interpretações, e não biografias de Jesus, como muitos 2o supõem. Os evangelhos canônicos são coletâneas planejadas com fins doutrinários. Assim sendo, é difícil extrair deles um perfil de Jesus. O planejamento não isento dos evangelhos canônicos fica claro através do estudo dos evangelhos apócrifos, principalmente do Evangelho de Tomé e do Evangelho de Q, fonte utilizada pelos evangelhos de Lucas e Mateus. O autor ressente-se também da falta dos documentos originais. 

Diante de tais dificuldades, o autor se utiliza de um método de estudo que situa o Jesus histórico no cruzamento de três vetores. O primeiro deles é a antropologia intercultural que se baseia em dados antropológicos da antiga cultura do mediterrâneo. O segundo é a história greco-romana, usando, principalmente, o historiador judeu Flávio Josefo como referência bibliográfica. O terceiro vetor é o literário ou textual, o qual considera que os Evangelhos canônicos não são nem uma coletânea total de todos os textos disponíveis, nem uma amostragem ao acaso selecionada deles. Alguns evangelhos foram deliberadamente aceitos e incluídos, enquanto outros foram rejeitados e excluídos. Outros aspectos que se deve salientar foram a retenção de materiais originais de Jesus, os desenvolvimentos desses materiais originais e a criação de materiais completamente novos. Crossan leva em consideração, também, as discrepâncias e as diferenças entre os diversos relatos. Desta forma, se concentra no mais antigo estrato da tradição, em materiais datados do período entre 30 e 60 E.C. Também nunca se baseia em nada que tenha apenas uma única atestação independente.

Dos quatro evangelhos pertencentes ao Novo Testamento, apenas Mateus e Lucas descrevem um relato do nascimento de Jesus ou de seus primeiros anos de vida. Segundo Crossan, não é a ausência do relato nos outros evangelhos que merece explicação, e sim a sua presença em Mateus e Lucas. Um ponto em comum em ambos os evangelhos citados é que Jesus nasceu no governo de Herodes, entre 37 e 4 A.E.C (antes da era cristã). Ou seja, Jesus nasceu pelo menos quatro anos antes do marco inicial da era cristã, referido popularmente pelos cristãos do mundo ocidental como A. C. (antes de Cristo). Como a morte de Herodes foi marcada por uma grande rebelião social e política que culminou com uma repressão violenta e a crucificação de dois mil rebeldes, o fim da era do rei Herodes ficaria gravado facilmente na memória popular. Assim, é possível que as primeiras tradições cristãs pudessem se recordar se Jesus nasceu antes ou após esse fato histórico. Quanto ao período de sua morte, Jesus morreu entre 26 a 36 E.C., período esse que coincide com Pôncio Pilatos como prefeito da província romana da Judéia.

Os relatos de Lucas e Mateus são diferentes com relação às condições do nascimento de Jesus. Lucas inclui os pastores e os anjos, o estábulo e a manjedoura, enquanto Mateus inclui os Reis Magos, o massacre dos inocentes por Herodes e a fuga para o Egito. 

Lucas relata, paralelamente, as histórias dos nascimentos de Jesus e João Batista. Esse evangelista integra e correlaciona o nascimento de Batista às Escrituras Hebraicas em que o filho predestinado nasce de um casal infértil e/ou idoso e que sua própria concepção anuncia essa predestinação para a grandeza. O paralelismo continua com a exaltação do nascimento de Jesus sobre o de João Batista, um nascido de uma virgem e o outro de pais velhos e estéreis. A exaltação de Jesus tem continuidade na descrição do crescimento dos meninos: enquanto Jesus é encontrado no templo, sentado no meio de doutores, João habitava o deserto para fortalecer o espírito. O questionamento que cabe aqui não é o fato de Jesus ser claramente maior aos olhos de Lucas, mas, sim o fato de Lucas precisar exaltar Jesus em relação a João Batista.



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Mateus também relaciona o nascimento de Jesus às Escrituras Hebraicas, estabelecendo uma correlação com a infância de Moisés. Na história de Moisés, o faraó ordena que todos os meninos ao nascer sejam jogados no rio Nilo. Moisés só se salva porque a sua mãe o esconde em uma cesta e o lança às margens do rio, de onde é resgatado pela filha do faraó. Quando adulto Moisés liberta o seu povo da escravidão do Egito e o conduz à Terra Prometida. Em comparação com a história de Jesus, o rei Herodes também ordena matar um menino predestinado a salvar o seu povo. Porém, Jesus foge com seus pais para o Egito, a terra da qual Moisés escapou.

Mateus e Lucas, além da data aproximada do nascimento de Jesus, concordam em três aspectos: a concepção virginal, a ascendência davídica e o nascimento em Belém. Crossan busca em Isaías 7,14-25 a profecia da concepção virginal: “Eis que a jovem esta grávida e dará a luz a um filho e dar-lhe-á o nome de Emanuel”. Segundo Crossan, Mateus que conhecia a profecia tomou seu termo virgem para aplicá-lo não somente ao estado anterior da mãe, mas ao seu estado permanente mesmo após a concepção.
Quanto ao local de nascimento, tanto Mateus quanto Lucas concordam que foi em Belém. O povo judeu, massacrado por anos de exploração estrangeira, aguardava o messias que libertaria seu povo da subjugação. Mas esse rei judeu deveria, pelas profecias, pertencer à linhagem do rei Davi e nascer em Belém. E no livro de Miquéias do final do século oitavo A.E.C. que Crossan identifica o local de nascimento daquele que deveria ser o messias: “Mas de ti, o Belém de Efrateu, que é um dos pequenos clãs de Judá, de ti virá para mim àquele que governará em Israel, cuja origem e de outrora, de tempos antigos”.
 
Segundo Mateus, José e Maria sempre residiram em Belém e só se mudaram para Nazaré após o retorno da fuga para o Egito. Já Lucas usa a desculpa do recenseamento para deslocar o nascimento para Belém. A historia contada por Lucas possui várias fragilidades, pois alguns acontecimentos relatados por ele não são comprovados historicamente. Por exemplo, não há uma documentação histórica de que tal censo ocorreu durante o período de Otávio Augusto. Existe, apenas, o relato de um censo que abrangeu a Judéia, Samaria e Iduméia, porém esse fato se deu dez anos após a morte de Herodes, o que não corresponde ao período relatado por Lucas. Também, as pessoas são registradas em censos nos seus locais de trabalho ou moradia, sem necessidade do transtorno do deslocamento. Para Crossan, as histórias contadas pelos dois evangelistas sobre o nascimento são cativantes, mas não passam de pura ficção. O local mais provável do nascimento de Jesus é Nazaré. O nascimento em Belém descrito por ambos nada mais é que uma tentativa de oficializar o cumprimento da profecia.

Pelo relato de Marcos 6,3, acredita-se que Jesus teve ao menos quatro irmãos, cujos nomes eram Tiago, José, Judas e Simão e também duas irmãs. No mesmo relato é referido que Jesus era carpinteiro de profissão, não um carpinteiro como nos tempos modernos que é bem remunerado, um fabricante de móveis. Na sua época, a profissão de carpinteiro era considerada como de classe inferior, um tekton que significava um “faz-tudo”. Além disso, como 95 a 97 % do estado judaico eram de analfabetos, supõe-se que Jesus também era analfabeto, mas era conhecedor de uma cultura oral – que incluía historias básicas de suas tradições-, assim como a maioria de seus contemporâneos. Cenas como Jesus surpreendendo os mestres no Templo de Jerusalém são consideradas por Crossan como pura propaganda doutrinária de Lucas.

Segundo Crossan, dizer que Jesus foi batizado por João Batista é tão certo historicamente quanto pode ser qualquer coisa sobre os dois. A tradição cristã fica claramente embaraçada com o batismo de Jesus por João Bastista, porque o fato parece tornar João Batista superior a Jesus. Para minimizar essa situação, há trechos bíblicos com frases proferidas pelos envolvidos nesse episódio, como as que se pode verificar em Marcos 1, 9-11 em que logo após o batismo, uma voz dos céus anuncia: “Tu és o meu Filho, amado, em ti me comprazo". O relato de Lucas 3, 2-1 é um pouco mais exagerado e põe palavras na boca de Batista: “Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a mim?".
 
João Batista era um profeta apocalíptico e acreditava que Deus faria o que a força humana não podia fazer: destruir o poder romano. Em relação a Jesus, a principal pergunta não é se ele começou como um profeta apocalíptico também, mas se continuou como tal, e se, quando iniciou a sua própria missão, o fêz recolhendo a bandeira caída após a morte de Batista. Mas, ao que parece, pode ter sido a execução de João Batista que levou Jesus a compreender um Deus que não atuou e não atuaria por meio da restauração apocalíptica iminente. Jesus compreende que o Reino de Deus não é um reino futuro, é um reino aqui e agora! 

O Reino de Deus é uma proposta definitivamente muito ousada de Jesus. Uso, para elucidar essa ideia, as próprias palavras de Crossan: ”Não convidava a uma revolução política, mas encarava uma revolução social nas profundezas mais perigosas da imaginação”. Jesus foi o anunciador de uma intermediação que não deveria existir entre a humanidade e a divindade. Esse foi um dos motivos da ira dos sacerdotes do Templo contra ele. Sua proposta não era dependente de uma intervenção divina para restituir a justiça e a paz a uma terra violentada pela injustiça e pela opressão. A consumação desse reino seria tangível e visível para todos, crentes e incrédulos, mas com destinos distintos para cada grupo. O Reino de Deus representava um estilo de vida para o presente, mais do que uma esperança para o futuro. Era um reino para todos, sem distinções ou hierarquias: homens e mulheres, judeus e não judeus, escravos e livres, ricos e pobres, crianças e adultos. Em vários momentos da pregação de Jesus, o grupismo familiar foi negado em favor de outro aberto a todos que desejassem aderir a ele, tal qual uma grande fraternidade universal, alicerçada num igualitarismo radical. A comensalidade aberta, onde todos - judeus, publicanos, doentes e prostitutas - compartilhavam de uma refeição comum, era o símbolo e a corporificação do igualitarismo radical. Jesus levava a cura gratuita em troca da partilha gratuita. Apesar de não fazer distinções, Ele pregava principalmente para os destituídos que, por definição eram mais que pobres, vitimas de um sistema social desigual que vivia na penúria. Em suma, o Reino de Deus é o que o mundo poderia ser se Deus estivesse direta e imediatamente a sua frente. 

 Segundo Marcos 6, 8-9, Jesus recomendava, aos seus seguidores, que nada levassem para o caminho da pregação, nem pão, nem alforje, nem dinheiro no cinto, apenas um cajado e que calçassem sandálias, porém não levassem duas túnicas. Uma vez que havia uma reciprocidade cura-comida, não era necessário que se carregasse alforje ou dinheiro. Ao longo dos séculos I e IV, o galileu pobre que pregava uma mensagem radicalmente inédita e humanitária tornou-se o Filho de Deus, e a fé Nele tornou-se mais importante que a fé Dele.

Além da mensagem maravilhosa ou assustadora sobre o Reino de Deus, Jesus partia para a ação através das curas de doenças e exorcizações de demônios. Em relação à tão mencionada lepra na Bíblia, o autor enfatiza que a mesma era conhecida na época como elephas ou elefantíase, e que lepra servia para denominar qualquer doença descamativa da pele. Algumas delas passíveis de cura fácil ou espontânea. Em uma sociedade na qual predominavam valores como a honra e a vergonha, a pessoa leprosa não representava uma ameaça de contaminação médica, mas sim uma contaminação simbólica social, em que o acometido por uma maldição poderia tornar impuros os que dele se aproximassem. Crossan ressalta a diferença de conceitos entre doença e enfermidade. A primeira representa uma mudança na estrutura e função dos órgãos e sistemas, enquanto a segunda representa uma mudança negativa em estados de ser e de função social, sendo um acontecimento psicológico e social. O enfermo sofria de estigma social devido a sua impureza e, por isso, era isolado e rejeitado por seus pares. Segundo Crossan, os milagres de cura de Jesus nada mais eram do que a cura da enfermidade, que se caracterizava pela reintegração e acolhimento do enfermo pela comunidade.



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Sobre possessão, o autor afirma não crer que haja espíritos sobrenaturais que possam invadir os corpos das pessoas. Dessa forma, Crossan busca outras explicações para o fenômeno e acredita que esse seja uma forma especial de perturbação múltipla da personalidade. Em continuação à sua linha de raciocínio, Crossan se respalda na tese de “Estados alterados de consciência”, explicando que parece existir um espectro normal para atividade física ou mental e para a química cerebral que media entre eles. Qualquer coisa acima ou abaixo desse espectro pode criar o transe ou outras denominações sinônimas como êxtase, dissociação ou estados alterados de consciência. O transe pode ser produzido por qualquer alteração crítica, para mais ou para menos, na estimulação externa dos sentidos, concentração interna da mente ou composição química da neurobiologia do cérebro. Deve ser aceito como um universal humano e com modelagem psicossocial. Assim, um católico em transe não terá a visão de Krishna ou de Maomé, mas sim da Virgem Maria, por exemplo. O transe é absolutamente intercultural e transtemporal, porém o conteúdo é condicionado psicoculturalmente. O autor procura uma explicação para o motivo de ter havido tantos transes no século I na opressão que o império romano exercia sobre os povos subjugados. Ele acredita existir uma relação entre a possessão e a opressão. A possessão é tida por Crossan como uma revolução simbólica individualizada contra as pressões sociais, familiares e o imperialismo romano. Os milagres de cura de Jesus o põem em rota de colisão direta com as autoridades sacerdotais do Templo, uma vez que Jesus exercia funções que eram atribuições dos sacerdotes que cobravam por esse trabalho.

Segundo o autor, o igualitarismo espiritual e econômico que Jesus pregava explodiu em indignação no Templo que era símbolo de tudo que não era igualitário e mesmo opressivo nos níveis religiosos e políticos. Os sacerdotes do Templo eram coniventes com o poder opressivo romano. Marcos 11, 15-18 se refere à expulsão dos vendedores do Templo e relata essa frase: ”Os chefes dos sacerdotes e os escribas ouviram isso e procuravam como fazê-lo perecer, pois toda a multidão estava maravilhada com o seu ensinamento”. Parece ficar claro para o autor do Evangelho segundo Marcos que o incidente no Templo foi o fato desencadeador da morte de Jesus. Crossan acredita que após o fato ocorrido no Templo, os soldados se deslocaram imediatamente para prendê-lo.

A crucificação era usada, pelos romanos para os escravos, para criminosos violentos e rebeldes. Pela descrição de Crossan, Jesus se enquadrava na última categoria. O fato de a crucificação ocorrer publicamente servia de intimidação contra novos rebeldes. O criminoso era crucificado nu, açoitado antes da crucificação e exposto, enquanto crucificado, em local de grande circulação a fim de ser objeto de humilhação. A vítima não era enterrada, mas abandonada, a própria sorte, na cruz que era baixa o suficiente para que o crucificado servisse de alimento para os animais selvagens. Os cães se alimentavam das partes inferiores do corpo e os abutres, das partes superiores. A falta de sepultamento digno era considerada uma desonra para os costumes da vítima e de sua família. Mesmo quando havia sepultamento – o que era um acontecimento excepcional -, o morto era deixado, pelos próprios soldados romanos, em cova rasa e seu corpo tinha o mesmo destino dos que permaneciam na cruz. A descrição de como as vitimas da crucificação eram tratadas tem respaldo histórico, pois foi encontrado um único esqueleto crucificado em Giv’at ha-Mivtar, nordeste de Jerusalém, em 1968. O esqueleto era do jovem Yehochanan, que tinha entre 24-28 anos. Crossan considera o caso de Yehochanan uma exceção à regra, pois, se a família tivesse uma grande influência política, a pessoa em questão não seria crucificada e, ainda se a pessoa chegasse a ser crucificada, sua família não teria influência suficiente para obter um sepultamento digno. Crossan considera José de Arimatéia uma criação de Marcos, consequentemente Jesus não foi retirado da cruz e enterrado, como consta em alguns evangelhos. Jesus era de origem humilde e a sua família não poderia exercer qualquer tipo de influência, junto aos governantes, para que fosse retirado da cruz e, posteriormente, devidamente sepultado conforme os costumes de seu povo.

Após o incidente no Templo, a morte de Jesus era previsível. O que não era previsível era que o fim não fosse o fim!

A fé cristã é fortalecida e não enfraquecida pela morte de Jesus. E é isso que os Evangelhos nos relatam: transformar o fato da morte de Jesus um evento de fortalecimento. Logo após a morte de Jesus, a expectativa dos seguidores era a parusia. A ressurreição se inicia com Paulo que era fariseu e acreditava na ressurreição das pessoas no final dos tempos. As aparições de Jesus para seus seguidores são consideradas por Crossan como transes, ou seja, estados alterados de consciência como foi explicado anteriormente. O que interessa nas aparições não são as mensagens, mas que elas outorgam o poder a quem as vê, como a exaltação da liderança de Pedro em detrimento da de João e Tomé em João 21, 1-8, capitulo que é considerado um enxerto posterior por exegetas. Em João 20, 1-18, a liderança de João é exaltada em detrimento da de Maria Madalena, Pedro e Tomé. O autor destaca que a liderança de Maria Madalena também necessitava de oposição. O que se pode observar aqui é uma disputa de autoridades nas diferentes comunidades na origem do cristianismo primitivo.

A comensalidade aberta de Jesus foi ritualizada em separado após a sua morte, seja como eucaristia da refeição de pão e peixe, seja de pão e vinho. Lideranças específicas ou de grupos líderes sobre comunidades em geral foram enfatizadas utilizando-se refeições eucarísticas. Em Lucas 24, 13-46, há o relato de que dois seguidores de Jesus deixaram Jerusalém em direção a Emaús, tristes, após a morte de Jesus. No caminho, Jesus juntou-se a eles, mas não foi reconhecido de início. Foram seguindo pelo caminho enquanto conversavam e Jesus explicou-lhes como as Escrituras Hebraicas deviam tê-los preparado para o destino dele. Os seguidores convidaram-no para uma refeição. Jesus tomou o pão, o abençoou, depois o partiu e o distribuiu a seus companheiros de viagem. Então, seus olhos se abriram e eles o reconheceram. Voltaram alegres para Jerusalém. Para Crossan, o simbolismo desse fato é claro: Emaús nunca aconteceu, mas Emaús acontece sempre!

Enfatizo mais uma vez que o Jesus histórico é diverso do confessional. Para nós, espíritas, Jesus é um espírito puro, considerado o mais evoluído de todos no planeta e o maior exemplo a ser seguido. Para os católicos romanos, Ele é o Verbo de João, o próprio Deus. Já para os judeus e os mulçumanos é mais um profeta. No entanto, por mais que se estude sobre Ele ainda permanece uma pergunta: quem foi realmente este homem que após 2000 anos, ainda é capaz de emocionar e manter entre nós viva a sua mensagem maravilhosamente humanitária e atemporal?

Finalizo esse texto dando a palavra ao próprio Crossan: “Não é suficiente, portanto, continuar dizendo que Jesus não nasceu de uma virgem, não nasceu da linhagem de Davi, não nasceu em Belém, que não houve estábulo, pastores, estrela, magos, massacre de crianças e nem fuga para o Egito. Tudo isto é verdade, mas ainda fica a pergunta sobre quem era e o que fez para levar seus seguidores a fazer tais afirmações. Esta é uma questão histórica...”

domingo, 21 de abril de 2013


Fonte: http://download.creative.arte.tv/creative/spaces/4697/4697-logo-crop-1349816472119.jpg


O ESTADO LAICO E A PEC DA TEOCRACIA
Por Jefferson


                Laicidade ou Laicismo, no âmbito do Direito, é a separação entre o Estado e a religião. É uma conquista da República, pois nos estados absolutistas o rei era, antes de tudo, uma expressão visível da vontade de Deus, e o Estado era um presente divino ao soberano, podendo conduzi-lo da maneira que melhor lhe aprouvesse.

                Com o advento da República e a consequente escolha do líder político por processo democrático e eletivo, a esfera pública e a esfera privada ficaram separadas em definitivo. Uma das consequências dessa separação foi o afastamento do Estado do campo religioso, o chamado Estado laico, isso porque a religião é uma escolha eminentemente privada, que diz respeito a cada indivíduo, não podendo ser imposta por quem quer que seja.

                Quando o Estado, representado por seus governantes e parlamentares, resolve ultrapassar essa barreira, ele invade a esfera de cada um de seus cidadãos. Não porque defenda a crença em Deus, seja que deus for, mas porque quer  impor um código moral religioso a pessoas que possuem profissões de fé diferentes ou que nem fé possuem. Via de regra, desrespeitada a característica laica do Estado, a máquina pública deixa de ser de todos e passa a ser instrumento para impor o código moral/religioso de um grupo. Uma determinada agremiação de fé entende que possui uma procuração de Deus para agir em nome Dele e quer se aproveitar da força das instituições da República para impor o seu ponto de vista a todos os demais cidadãos. Chamamos isso de desrespeito.

                Muitas vezes o argumento do grupo infiltrado em um poder ou em uma instituição republicana, como o Congresso Nacional, por exemplo, é de que possui a legitimidade de uma maioria, por isso há uma vitória democrática. Isso é uma falácia. O Estado Democrático de Direito não se confunde com a ditadura da maioria. Princípios que regem todos os códigos de um país não podem ser subvertidos por uma maioria que quer se impor sobre o direito de outros grupos.

                Recentemente, o Deputado João Campos (PSDB-GO), presidente da Frente Parlamentar Evangélica, propôs uma PEC – Proposta de Emenda Constitucional – para incluir as associações religiosas de âmbito nacional no rol de legitimados para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) e ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs). Segundo o parlamentar proponente, a referida PEC tem por objetivo preservar a liberdade religiosa e a liberdade de culto, que podem ser ameaçadas por normas expedidas pelos agentes estatais. Sob essa hipotética ameaça, uma associação religiosa de âmbito nacional poderia demandar via ADI ou ADC, conforme o caso, diretamente no Supremo Tribunal Federal (STF) na defesa dos seus direitos.

                Não resta dúvida de que a pretendida PEC fere o princípio do Estado laico, pois legitima entidades religiosas a serem sujeitos ativos na mais alta corte jurídica do país para, via Judiciário, atacarem as tarefas normativas das instituições laicas democraticamente consagradas, com o intuito de defenderem o seu interesse particular. Enquanto detentoras de personalidade jurídica, nenhuma igreja, centro ou terreiro, por menor que seja, está desamparado da proteção do Estado, podendo atacar o ato concreto na comarca judiciária de sua cidade. É o chamado controle difuso de constitucionalidade. De outra forma, partidos políticos, Ordem dos Advogados do Brasil e Ministério Público Federal já se encontram no rol dos legitimados para a propositura dessas ações, não precisando nem mesmo ser provocados, solicitados por nenhuma entidade – de crentes ou ateus - para isso. Portanto, além de macular o Estado laico, a PEC é desnecessária.

                Existem muitos assuntos que estão tramitando no Congresso Nacional e que encontram forte oposição da Frente Parlamentar Evangélica. Legalização do aborto, casamento gay, eutanásia, liberação das drogas, criminalização da homofobia e ensino religioso nas escolas públicas são alguns temas em discussão nas sessões dos nossos parlamentares nacionais. Essas discussões interessam a toda sociedade brasileira e devem atender a população de um país como um todo. As idéias controvertidas do pastor/deputado Marcos Feliciano, atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, somente acirraram mais o radicalismo entre os defensores da “moral cristã” – conceito indefinido, pois muda conforme a vertente – e os ativistas de vários grupos de movimentos civis.

A referida PEC, ao contrário do que o Deputado João Campos propagandeia, não pretende se restringir aos problemas de liberdade religiosa e de culto. Acreditar nisso, conhecendo a atuação da chamada “Bancada Evangélica” no Congresso Nacional seria ingenuidade. É um atalho para discutir no STF assuntos civis que o Congresso brasileiro já bateu o martelo. É permitir um novo fórum de debate em assuntos já ultrapassados na esfera legislativa.

                Cada um desses deputados e senadores, eleitos por seus redutos religiosos/eleitorais, pertencem a uma sigla partidária, sigla essa que possui legitimidade jurídica para discutir na Suprema Corte as sua divergências com as normas postas. Não há a mínima necessidade de que as duas maiores religiões do país – Católica e Protestante – se façam representar via aparato estatal no cume do Judiciário pátrio. Dizemos essas duas pois são as melhores representadas e estruturadas para isso. As chamadas seitas e religiões de menor expressão permanecem na marginalidade da nova PEC.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjT21C2pvJcRoHrav2-hyruUcJovyUfFaf7xyy0mUficaEhajmKmndpW2Jj5J6OxlyLaFYSEF6Aj2mE3M5kF7eoFeUWwW70Fd3wimMFc4RPCoIFhABC7K1y3VAlgijmT_CHFRyCFkniVjSv/s1600/178999_184826584872989_184824094873238_524409_3591550_n.jpg


                Existe um princípio elementar em qualquer democracia republicana: nas discussões políticas, a Constituição Federal tem que estar acima de tudo, inclusive da Bíblia, do Corão, do Evangelho Segundo o Espiritismo ou de qualquer outro livro considerado sagrado. A Carta Magna do nosso país deve ser o texto máximo porque ela tem que atender a todos, inclusive católicos, muçulmanos, espíritas, outras denominações religiosas e, inclusive, quem não tem religião e não acredita em nenhum deus. Quando respeitamos isso, estamos também defendendo a liberdade de cada um cultuar Deus do jeito que se sentir melhor.

                Aborto e liberação das drogas e outros assuntos polêmicos não podem ser decididos no Parlamento com base nas convicções desse ou daquele grupo religioso, mas com argumentos que satisfaçam a todos, inclusive o brasileiro e a brasileira que não possui crença religiosa nenhuma. Isso é o Estado laico, com suas qualidades e defeitos, mas é o princípio que nos assegura a liberdade religiosa e a plenitude do exercício da cidadania.

                Particularmente, nós, espíritas, que prezamos e defendemos a liberdade de consciência como atributo inerente a cada ser humano, podemos e devemos defender o nosso ponto de vista, fora dos nossos centros religiosos, com todos os argumentos jurídicos, sociais e científicos que conheçamos. É assim que se discute em um regime democrático como cidadãos. Devemos ter argumentos sólidos que satisfaçam a todos, inclusive aqueles que não acreditam em Deus, na imortalidade da alma, na lei de causa e efeito, na reencarnação e na comunicação dos desencarnados. Assim faremos a nossa causa vitoriosa, e não com convicções pessoais, ainda que sinceras e verdadeiras para nós, mas que não fazem parte do sistema de crença dos demais concidadãos.

                Para os que tiverem interesse, segue o link do programa “Expressão Nacional”, da TV Câmara, contendo o vídeo do debate entre o Deputado João Campos, autor da PEC, o Deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), o cientista político Murilo Aragão e este que aqui escreve, Jefferson Bellomo, participante do programa na condição de especialista em história das religiões.



                
Da minha parte, não tenho a mínima dúvida que a proposta feita pelo referido parlamentar atenta não só contra o Estado laico, mas, em visão mais ampla, também contra as bases do Estado Democrático de Direito.


segunda-feira, 1 de abril de 2013

Fonte: http://images.moticate.com/public/iStock_000000591457Small.jpg

 

 JESUS HISTÓRICO - UM ESTUDO RELATIVO

Por Jefferson



Recebemos e-mail do nosso amigo e aluno do Curso Cristianismo e Espiritismo, Adolfo Simon, com a seguinte indagação aqui transcrita:

Caros Douglas e Jefferson.

Desculpem-me por fugir do texto primoroso sobre mitos, mas não sei exatamente onde "conversar" com voces sobre o tema Jesus Histórico, que é realmente muito interessante e o tempo da aula acaba ficando exíguo para satisfazer a ânsia dos alunos em perguntar ou comentar o que foi apreendido a partir dos textos e da aula. Nesse sentido, estou fazendo este post, na esperança de que um de vocês tenha tempo para comentar e corrigir eventuais distorções da minha compreensão a respeito do assunto.

Entendi, a partir do texto do Roberto Pompeu de Toledo, na Veja de 1992, das suas respostas às perguntas que estavam no blog e da entrevista com o professor Gabriele Cornelli, que talvez nunca possamos remontar de maneira completa o “Jesus real” e que o Jesus que emerge das pesquisas históricas – o “Jesus histórico”, a partir da análise não contaminada pelo sectarismo religioso dos evangelhos canônicos, dos manuscritos do Mar Morto e de outras pesquisas arqueológicas, ambientando adequadamente a sua figura à época, local e circunstâncias em que Ele viveu, esclarece muito melhor o que Jesus não pode ter sido, desmontando um pouco do imaginário de cada um, mas também com discordâncias entre os historiadores, demonstrando que as conclusões que conduzem à hipótese de quem era Jesus – o Jesus Histórico, se apoiam ainda muito em achados fragmentados, que levam a inferências em sequência e, como consequência inevitável, conclusões diferentes nos detalhes, como é o caso da educação e das condições socioeconômicas da família de José, do tempo de pregação, do convívio ou não com determinada seita e outros que a minha ignorância não permitiu captar.

Não faz sentido, no momento, comentar a respeito da transformação de Jesus em Cristo e Deus (a terceira das “personalidades de Jesus”, fora o Jesus individual), mas seu exemplo e seu Evangelho, a “Boa Notícia” que nos deixou, moldou o pensamento ocidental a partir dessa transformação, apesar das deformações que a institucionalização causou, a partir do século IV DC. Estou errado nesta conclusão?

O problema que surge é de credibilidade. Será que tudo o que foi comentado dos Evangelhos, com suas falhas históricas, sua autoria contestável e a época real de suas redações comprometem o conteúdo como um todo? Acredito (opinião pessoal) que se separarmos adequadamente o anúncio da figura de Jesus Cristo – a publicidade que permitiu sua penetração no mundo romano, dos ensinamentos morais e do estabelecimento definitivo do conceito de vida no mundo espiritual, o problema se resolve.
Não foi mais ou menos isso que Kardec fez, ao elaborar o Evangelho Segundo o Espiritismo?
 
Um abraço,
Adolfo Simon

Com a sua autorização, reproduzimos aqui a nossa resposta.
 
Oi Adolfo, feliz Páscoa para você e os seus!
 
Obrigado pela postagem e vou tentar responder dentro daquilo que estudei.
 
A pesquisa sobre Jesus histórico é uma pesquisa em andamento. Ainda não está concluída. Assim, temos muitas coisas ainda a serem resolvidas, principalmente quanto a detalhes, pois as linhas gerais estão pacificadas. 
 
O ícone da "terceira busca" - John Dominic Crossan - afirma algo que deve ser motivo de reflexão para nós:
 
“É impossível evitar a desconfiança de que a pesquisa do Jesus histórico é um campo em que se pode fazer teologia e chamá-la de história, ou então fazer autobiografia e chamá-la de biografia, sem correr grandes riscos.” (CROSSAN, 1994, p. 27).
Feita esta observação, sigamos.
 
Existem discordâncias entre pesquisadores sobre o objeto de estudo em questão, mas isso ocorre em relação a vários outros personagens históricos, inclusive personagens muito bem documentados e mais recentes, como Napoleão Bonaparte, Hitler e Getúlio Vargas.
 
No caso de uma figura central de uma das maiores religiões do planeta, com recursos parcos de documentação, não há como afastar o caráter ideológico, consciente ou inconsciente, dessas pesquisas. Ninguém será isento em área nenhuma do conhecimento, muito menos quando o assunto é Jesus Cristo. Um historiador ateu, outro cristão, outro espírita, outro judeu, etc., terão visões de Jesus mais ou menos contaminadas por suas crenças. São seres humanos e a sua ciência será fruto de sua humanidade.
 
Mesmo assim, com todos os avanços metodológicos e técnicos, o cerco em torno de um conhecimento ideológico tem se fechado cada vez mais. Cada tese, cada artigo é muito avaliado e discutido entre pares do meio acadêmico. As reputações de teóricos estão cada vez mais estão em xeque. As discordâncias ficaram menos marcantes e se atêm cada vez mais aos detalhes nem sempre relevantes.
 
Portanto, existem hipóteses muito robustas nas linhas gerais, como Jesus ter nascido em Nazaré, ser de família campesina pobre, de ter vivido em um mundo de mentalidade apocalíptica, etc. Casado ou solteiro, letrado ou analfabeto, mono ou poliglota, isso são detalhes que não tem a importância de afastá-lo do mundo conturbado e profundamente religioso em que vivia.
 
Portanto, muito temos a compreender Jesus de Nazaré através dos estudos de Jesus histórico. Para nós espíritas, o desafio é grande, pois temos médiuns e mentores - a quem reverenciamos - que estão com muitas de suas informações refutadas por esses estudos. Um espírito pode contradizer um pesquisador, sem problemas. Agora, e quando o espírito é desacreditado por um achado arqueológico? Também nisso os estudos sobre Jesus histórico nos prestam um grande favor, pois a nossa premissa é de que a verdadeira fé é aquela que pode enfrentar a razão em todas as épocas . 
 
Quando à credibilidade dos evangelhos, vale à pena ler a referência que faço no texto enviado ontem (Aula 06- Jesus, o início) sobre a "New Quest" com Käsemann, que reproduzo abaixo: 
 
"Sem dúvida, os textos canônicos do Segundo Testamento são querigmáticos, mas não se pode simplesmente negar a existência de um teor histórico nas narrativas, e sim mudar abordagem metodológica. Para Käsemann, a fé pascal faz parte de uma tradição querigmática que também inclui aspectos do Jesus encarnado." (p. 5)
 
Em outras palavras, temos uma tela branca de fatos históricos pintadas pelas cores fortes do anúncio (kerigma) de Cristo ressuscitado. As cores estão sobre uma tela real, a busca por Jesus histórico é ver a tela apesar da pintura vibrante.
 
A parte moral dos evangelhos é muito importante, mas não devemos subestimar o poder da verdade histórica, ainda que envolta em discussões infindáveis. Lembremos que o antissemitismo e tudo que ele resultou, o ódio aos homossexuais, a categorização inferior da mulher, etc.,  foi resultado da falta da crítica histórica dos textos canônicos.
 
Assim, o aspecto moral continua irresistível e tem atrevessado os séculos, mas o bisturi do método crítico-histórico se faz necessário para estirparmos os tumores que justificam as injustiças em nome de Cristo.
 
Espero ter contribuído.
 
Amigo Douglas, caso queira complementar ou divergir em algo, fique à vontade.
 
Um abraço - Jefferson
 
Como o assunto é de interesse de todos que frequentam o curso, pedimos a autorização do Adolfo para publicar os seus comentários e a resposta respectiva.
 
 
CROSSAN, John Dominic. O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo. Tradução de André Cardoso. Rio de Janeiro : Imago E., 1994.