quinta-feira, 5 de abril de 2012

Cristo Pantocrator - Monastério da Síria

ICONOGRAFIA CRISTÃ – A EVOLUÇÃO DAS IMAGENS
Jefferson


O presente artigo é a transcrição do trabalho apresentado pelos alunos Jefferson R. Bellomo e Myrtes C. Lobo Vianna para a disciplina “Iconografia Paleocristã”, ministrada pela professora Vera Pugliese, matéria do curso de pós-graduação latu sensu “Cristianismo Antigo”, realizado pela Universidade de Brasília (2011/2012). O trabalho recebeu nota máxima.


Introdução
A proposta deste trabalho é apresentar uma análise comparativa de duas obras paleocristãs  no que diz respeito a aspectos formais e de conteúdo com duas obras de iconografia cristã posterior ao Concílio de Éfeso. 

Abriremos os trabalhos com um breve apontamento sobre o Cristianismo e as Imagens onde logo no início do cristianismo, como atestam as pinturas feitas a partir do segundo século da Era Comum, nas catacumbas romanas, a simbologia trazida do paganismo é apropriada pelos seguidores de Cristo, fazendo com que determinados elementos fossem ressignificados dentro do novo movimento e também propício  para o aparecimento dessa manifestação artística – a iconografia.

Em seguida trataremos do Comparativo de Imagens onde priorizamos a figura da Virgem Santíssima que pelo primeiro concílio de Éfeso é considerada a Mãe de Deus e não Mãe de Cristo como queria a seita herética conhecida como nestorianismo.


Desenvolvimento

I - Um Breve Apontamento sobre o Cristianismo e as Imagens

O livro do Êxodo, um dos mais importantes do Antigo Testamento, traz a proibição dada por Deus aos hebreus - posteriormente, considerada válida também aos cristãos - para que estes não fizessem imagens que servissem de objeto de adoração:

"Então Deus pronunciou todas estas palavras: Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de minha face. Não farás para ti escultura, nem figura alguma do que está em cima, nos céus, ou embaixo, sobre a terra, ou nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto." (Ex[1] 20, 1-4)

Provavelmente, o mandamento citado não deve ter sido difícil de ser respeitado pelos primeiros seguidores de Jesus, visto que eles estavam inseridos no judaísmo e não pretendiam formar nenhum tipo de religião diferente, mas seguir os preceitos herdados de seus antepassados, confiantes nas promessas feitas por Yahweh (nome hebraico de Deus) a Abraão.

Contudo, conforme o denominado Caminho (At[2] 9,2; 18, 25-26) foi tomando às cidades da Ásia Menor e se transformando em Cristianismo (At 11, 26), recebendo uma influência greco-romana cada vez mais intensa em suas comunidades, muito natural que a cultura trazida por esses novos cristãos tingisse ou modificasse antigas proibições judaicas, entre elas, a proibição das representações da divindade.

Logo no início do cristianismo, como atestam as pinturas feitas a partir do segundo século da Era Comum, nas catacumbas romanas, a simbologia trazida do paganismo é apropriada pelos seguidores de Cristo, fazendo com que determinados elementos fossem ressignificados dentro do novo movimento. A própria marginalidade em que foi colocada essa nova seita colaborou para que a simbologia simples e rudimentar (falta de rigor anatômico, pouco naturalismo; pobreza na variação cromática, etc.) fosse propícia para o aparecimento dessa manifestação artística.

Símbolos inicialmente pertencentes à mitologia pagã, como o peixe, a âncora, o alfa e o ômega, a videira e a pomba foram tomados e modificados pelos cristãos. IXOYC (Ichtus - peixe em grego) serviu de anagrama para a expressão "Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador" (Gr[3]: Iesus Christós Theóu Uiós Soteér), era relacionado ao batismo, por ter a água como seu elemento natural, e aludia ao milagre da multiplicação dos pães e à pesca milagrosa com Pedro e André (Mc[4] 6, 34-44). A âncora significava a esperança na Salvação, a primeira e última letra do alfabeto − alfa e ômega − grego representavam o monograma de Cristo, e assim por diante. Orfeu pastoreando os animais converteu-se na imagem do Cristo Bom Pastor que salva as almas perdidas, simbolizada pela ovelha em seus ombros.

Conforme o cristianismo se popularizava e se institucionaliza, suas manifestações artísticas são aprimoradas. Representações cada vez parecidas com as imagens de Apolo para Jesus e de Diana para a sua mãe são objeto de prostração e culto, o que rendeu acusações graves de idolatria por parte daqueles que enxergavam na doutrina cristã a continuidade, e não ruptura, das tábuas de Moisés.

Não obstante, graças à doutrina da encarnação, que apregoa que Deus se fez homem em Jesus Cristo, a representação e a adoração das imagens no ambiente cristão foram recebidas como um desdobramento natural da fé em Jesus, face visível de Deus. Visto que Deus agora tinha um rosto, que havia dado a Se conhecer. A adoração da imagem de Cristo era o reconhecimento da manifestação da divindade no mundo material.

"Não venero a matéria, venero Quem fez a matéria e Quem, por mim, se tornou matéria e aceitou habitar na matéria para através dela realizar a minha salvação, e não cessarei de reverenciar a matéria através da qual se faz a minha salvação". São João Damasceno (675-749) em "Apologia contra os que atacam às imagens divinas" (Cit. Woods Jr, p. 112).

Posteriormente, após o auge da crise iconoclasta, o segundo concílio de Nicéia (787 E.C.) decidiu que Cristo é passível de adoração e a Virgem Santíssima e os santos são passíveis de veneração. Com isso, alarga-se a estrada da produção e adoração religiosa de imagens e relíquias que irão culminar, no Ocidente, com a Reforma Protestante do século XVI.


II - Comparativos de Imagens - A Virgem Santíssima 

Segundo a Wikipedia, "A Arte paleocristã ou Arte cristã primitiva é a arte, arquitetura, pintura e escultura produzida por cristãos ou sob o patrocínio cristão desde o início do século II até o final do século V. Não há arte cristã sobrevivente no século I. Após aproximadamente o final do século V a arte cristã mostra o início do estilo artístico bizantino".


Imagem 01 : A Virgem Maria Amamentando o Menino Jesus
Século II ou III, Catacumba de Priscila, Roma



Em Roma, na catacumba de Priscila, encontra-se uma pintura rústica representando a Virgem Maria amamentando o Menino Jesus no colo, imagem do século II. À sua frente encontra-se o que se deduz ser do profeta Balaão que aponta para uma estrela pintada mais no alto da cabeça da mulher, representado por um circulo vermelho. A criança e a mãe se olham enquanto ela amamenta o menino nu que está apoiado em seus braços. Não há nada que ateste santidade na mãe ou divindade na criança. A pintura é “tosca”, não apresenta variedade cromática significativa, parecendo explorar apenas as nuances do ocre com o fundo branco da parede. Não se permite tirar maiores detalhes da pintura por que esta se encontra muito castigada pelo tempo e pela falta de cuidados, além do que, não se trata de uma obra com pretensões artísticas e simbólicas mais refinadas, mas simplesmente uma reprodução de uma narrativa do evangelho feita provavelmente por uma pessoa, um fiel cristão, sem instrumentos adequados e dotes artísticos. É apenas uma transposição pura e simples do texto de Mateus (Mt[1] 2, 9-11), uma decoração pictórica feita por um fiel provavelmente em homenagem a algum ente querido já morto.

Não são muitos os exemplos de arte paleocristã referentes a Nossa Senhora que se pode apresentar. Porem, mais um afresco pintado em uma catacumba Romana datado no século IV chama atenção por sua imagem um tanto quanto “assustadora”, provando que esta arte não se referia propriamente a um estilo, mas a todas as formas artísticas produzidas naquela época e por cristãos.


Imagem 02: A Virgem Maria e o Menino Jesus
Século IV, Catacumba de Roma.


A leitura da imagem seria apenas a de uma mulher com os braços erguidos e com um menino a sua frente ambos inseridos abaixo de um arco; se não fosse o detalhe à esquerda conhecido por “monograma grego de Cristo”, assim sendo, deduz-se que se trata de uma pintura cristã. Acredita-se tratar da Virgem Maria com um maphorion[1] ou véu fino e discreto, porem com os cabelos à mostra o que fugia à tradição judia e uma túnica trabalhada, as mãos erguidas estão em oração. Por hierarquia deixa em primeiro plano o Menino Jesus. Aqui nem a Virgem nem o Menino possuem ainda o halo ou auréola, confirmando suas santidades.

Todavia, não se pode deixar de perceber a evolução das representações da Virgem Maria com o Menino Jesus no colo foram se sofisticando na mesma proporção em que o cristianismo deixava de ser um movimento religioso e social de excluídos para se tornar a religião oficial do Império Romano.

Exemplo disso é a representação da Virgem como Odiguítria (do grego, pode ser traduzida como "Aquela que mostra o caminho").


Imagem 03: Ícone da Odigítria - sec. XIV –
Monastério de Balamand, Líbano.


O artista representa Nossa Senhora em posição frontal, com ligeira inclinação da cabeça, com o menino Jesus sentado no seu antebraço com em um trono, e com a outra mão parece apresentar o seu filho. Ela veste um manto púrpura, cor associada ao poder imperial, demonstrando a sua condição de Theóutokos, ou seja, que detém o poder divino por ser Mãe de Deus. A sua cabeça está coberta de forma que ficam ocultos por completo os seus cabelos, representando a mulher piedosa (1ª Cor[1] 11, 5-6). Da manga do manto surgem as mãos, com dedos compridos e finos, pois simulam ser os cabos condutores da energia espiritual. A figura da Virgem tem sobre si, apresentada pelos anjos, as letras MP OY, a abreviatura grega de “Mãe de Deus”, e próximo de seu ombro direito  a palavra  Odiguítria, "Aquela que mostra o caminho". Os dois anjos estão com as mãos cobertas por seus mantos em sinal de reverência e adoração.

O Cristo Menino, com uma das mãos faz o gesto da benção "à grega" e na outra mão ele segura o papiro enrolado. Jesus não é mais uma lactente, mas um jovem imberbe quase adulto, e usando as mesmas roupas que um adulto. O manto, geralmente amplo, deixa descoberto o pescoço, cobre os ombros e envolve o corpo inteiro em pregas amplas, deixando aparecer os pés com sandálias. A cor do manto é de um tom que faz referência a argila, o "barro" do qual somos criados e no qual Deus se fez carne simbolizando a matéria da qual o homem foi feito, mas respeitando o seu aspecto divino na sua auréola dourada com as iniciais gregas de Christos e, também, com as letras gregas оωн, referindo-se às palavras “Aquele que é”, (Ap[1] 1:8). A túnica por baixo do manto é branca, cor da unidade com Deus e da pureza. 

No século V edificou-se a primeira basílica dedicada a Nossa Senhora e em seu interior pode-se apreciar um mosaico datado do final do século XIII, onde a Virgem é coroada por seu Filho.


Imagem 04 : A Coroação da  Virgem
Século XIII, Basílica di Santa Maria Maggiore, Roma.
  

Aqui o artista apresenta um subtipo da Virgem Orante com a cabeça levemente inclinada para baixo e um semblante sereno ela aparece ladeada e sentada no mesmo Trono que Jesus Cristo aqui a Virgem está voltada para seu Filho com as mãos erguidas em sua direção colocando-o novamente em primeiro plano. Possui um halo liso e recebe uma coroa acima de seu véu, com os cabelos tapados assim como os seus pés que descansam em uma almofada similar a de Jesus.

Jesus no Trono, por sua vez pode ser considerado como um subtipo do Pantocrator. É representado como Juiz e Rei dos Reis que coroa e abençoa a Mãe. Possui como símbolo de sua santidade e da radiação da luz de Deus o halo com a cruz; seu manto externo passa sobre

o ombro esquerdo e desce pelo corpo simbolizando a natureza divina; a Túnica interna longa  desce até os calcanhares, simbolizando a natureza humana; uma faixa vertical desce do ombro direito como símbolo da aristocracia. Com a mão direita segura um livro e seus pés estão calçados por sandálias.

Fechando a cena, um grande círculo envolve os dois, que são observados por dezoito anjos de asas coloridas e distribuídos abaixo simetricamente.

Os afrescos refletem claramente o cânone exarado pelo primeiro concílio de Éfeso (431 E.C.) de que Maria de Nazaré é a Mãe de Deus (Gr.: Theóutokos) e não Mãe de Cristo (Gr.: Christotokos), como queria a seita herética conhecida como nestorianismo. E, nessa condição, a cristandade entende que é perfeitamente possível que ela nos guie para a salvação. Ela é a ponte para a redenção dos pecadores, pois por ela veio àquele que, sendo Deus, se fez homem para a redenção dos pecados da humanidade.


Considerações Finais
Portanto, a iconografia cristã de uma maneira geral, conforme vimos nos exemplos: A Virgem Maria Amamentando o Menino Jesus (século II ou III, Catacumba de Priscila, Roma), A Virgem Maria e o Menino Jesus (século IV, Catacumba de Roma), A Coroação da  Virgem (século XIII, Basílica di Santa Maria Maggiore, Roma),e o Ícone da Odigítria (século XIV, Monastério de Balamand, Líbano), não só é uma forma de representação de fé, como também é uma declaração não escrita dos dogmas que foram se desenvolvendo juntamente com o Cristianismo.

Mesmo com o cristianismo não tendo se consolidado ainda entre o final do século II e início do século III o fundamento básico do pensamento sobre a Virgem sempre foi direcionado para "aquela que deu à luz a Deus" apresentado tanto na iconografia paleocristã como na iconografia bizantina.


Referências Bibliográficas 
BACHET, Jérôme - A Civilização Feudal: do ano 1000 à Colonização da América - trad. Marcelo Rede, São Paulo : Globo, 2006.
BRANDÃO, Antônio Jackson de Souza - A Imagem Nas Imagens: Leituras Iconológicas - Embú-Guaçu : Revista Lumen Et Virtus, Vol. I Nº 2 Maio/2010
COSTA, Mariana Jorge Nobre - Panofsky: Iconologia - FBAUL, 2006. 
DUARTE, Adélio Damasceno. Ícones FUMARC, Belo Horizonte, 2003
EUSÉBIO, Maria de Fátima - A apropriação cristã da iconografia greco-latina: o tema do Bom Pastor - Texto apresentado nas XV Jornadas de Formação de Professores, de Homenagem ao Prof. Doutor Manuel de Oliveira Pulquério, Faculdade de Letras da UCP, 29 e 30 de Abril de 2004.
GHARIB, G. “Os Ícones de Cristo” Ed. Paulus, São Paulo, 1997,
História Geral da Arte, Pintura I, Madri : Ediciones del Prado, 1996.
WOODS JR., Thomas E.  -  Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental  -  trad. de Élcio Carilho, São Paulo : Quadrante, 2008.
 


[1] Livro do Êxodo
[2] Atos dos Apóstolos
[3] Transliteração do grego.
[4] Evangelho Segundo Marcos
[1] Evangelho de Mateus
[1] Veste externa das mulheres casadas.
[1] 1ª Epístola de Paulo aos Coríntios.
[1] Apocalipse

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