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O ESTADO LAICO E A PEC DA TEOCRACIA
Por Jefferson
Laicidade ou
Laicismo, no âmbito do Direito, é a separação entre o Estado e a religião. É
uma conquista da República, pois nos estados absolutistas o rei era, antes de
tudo, uma expressão visível da vontade de Deus, e o Estado era um presente
divino ao soberano, podendo conduzi-lo da maneira que melhor lhe aprouvesse.
Com o advento da
República e a consequente escolha do líder político por processo democrático e
eletivo, a esfera pública e a esfera privada ficaram separadas em definitivo.
Uma das consequências dessa separação foi o afastamento do Estado do campo
religioso, o chamado Estado laico, isso porque a religião é uma escolha
eminentemente privada, que diz respeito a cada indivíduo, não podendo ser
imposta por quem quer que seja.
Quando o Estado,
representado por seus governantes e parlamentares, resolve ultrapassar essa
barreira, ele invade a esfera de cada um de seus cidadãos. Não porque defenda a crença em Deus, seja que deus for, mas porque quer impor um código
moral religioso a pessoas que possuem profissões de fé diferentes ou que nem fé
possuem. Via de regra, desrespeitada a característica laica do Estado, a
máquina pública deixa de ser de todos e passa a ser instrumento para impor o
código moral/religioso de um grupo. Uma determinada agremiação de fé entende que
possui uma procuração de Deus para agir em nome Dele e quer se aproveitar da
força das instituições da República para impor o seu ponto de vista a todos os
demais cidadãos. Chamamos isso de desrespeito.
Muitas vezes o
argumento do grupo infiltrado em um poder ou em uma instituição republicana,
como o Congresso Nacional, por exemplo, é de que possui a legitimidade de uma
maioria, por isso há uma vitória democrática. Isso é uma falácia. O Estado
Democrático de Direito não se confunde com a ditadura da maioria. Princípios
que regem todos os códigos de um país não podem ser subvertidos por uma maioria
que quer se impor sobre o direito de outros grupos.
Recentemente, o
Deputado João Campos (PSDB-GO), presidente da Frente Parlamentar Evangélica,
propôs uma PEC – Proposta de Emenda Constitucional – para incluir as
associações religiosas de âmbito nacional no rol de legitimados para a
propositura de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) e ações
declaratórias de constitucionalidade (ADCs). Segundo o parlamentar proponente,
a referida PEC tem por objetivo preservar a liberdade religiosa e a liberdade
de culto, que podem ser ameaçadas por normas expedidas pelos agentes estatais.
Sob essa hipotética ameaça, uma associação religiosa de âmbito nacional poderia
demandar via ADI ou ADC, conforme o caso, diretamente no Supremo Tribunal
Federal (STF) na defesa dos seus direitos.
Não resta dúvida
de que a pretendida PEC fere o princípio do Estado laico, pois legitima
entidades religiosas a serem sujeitos ativos na mais alta corte jurídica do país para,
via Judiciário, atacarem as tarefas normativas das instituições laicas
democraticamente consagradas, com o intuito de defenderem o seu interesse
particular. Enquanto detentoras de personalidade jurídica, nenhuma igreja,
centro ou terreiro, por menor que seja, está desamparado da proteção do Estado,
podendo atacar o ato concreto na comarca judiciária de sua cidade. É o chamado
controle difuso de constitucionalidade. De outra forma, partidos políticos,
Ordem dos Advogados do Brasil e Ministério Público Federal já se encontram no
rol dos legitimados para a propositura dessas ações, não precisando nem mesmo
ser provocados, solicitados por nenhuma entidade – de crentes ou ateus - para
isso. Portanto, além de macular o Estado laico, a PEC é desnecessária.
Existem muitos
assuntos que estão tramitando no Congresso Nacional e que encontram forte
oposição da Frente Parlamentar Evangélica. Legalização do aborto, casamento
gay, eutanásia, liberação das drogas, criminalização da homofobia e ensino
religioso nas escolas públicas são alguns temas em discussão nas sessões dos
nossos parlamentares nacionais. Essas discussões interessam a toda sociedade
brasileira e devem atender a população de um país como um todo. As idéias
controvertidas do pastor/deputado Marcos Feliciano, atual presidente da
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, somente acirraram mais o
radicalismo entre os defensores da “moral cristã” – conceito indefinido, pois
muda conforme a vertente – e os ativistas de vários grupos de movimentos civis.
A referida PEC, ao contrário do que o Deputado João
Campos propagandeia, não pretende se restringir aos problemas de liberdade
religiosa e de culto. Acreditar nisso, conhecendo a atuação da chamada “Bancada
Evangélica” no Congresso Nacional seria ingenuidade. É um atalho para discutir
no STF assuntos civis que o Congresso brasileiro já bateu o martelo. É permitir
um novo fórum de debate em assuntos já ultrapassados na esfera legislativa.
Cada um desses
deputados e senadores, eleitos por seus redutos religiosos/eleitorais,
pertencem a uma sigla partidária, sigla essa que possui legitimidade jurídica
para discutir na Suprema Corte as sua divergências com as normas postas. Não há
a mínima necessidade de que as duas maiores religiões do país – Católica e
Protestante – se façam representar via aparato estatal no cume do Judiciário
pátrio. Dizemos essas duas pois são as melhores representadas e estruturadas
para isso. As chamadas seitas e religiões de menor expressão permanecem na
marginalidade da nova PEC.
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjT21C2pvJcRoHrav2-hyruUcJovyUfFaf7xyy0mUficaEhajmKmndpW2Jj5J6OxlyLaFYSEF6Aj2mE3M5kF7eoFeUWwW70Fd3wimMFc4RPCoIFhABC7K1y3VAlgijmT_CHFRyCFkniVjSv/s1600/178999_184826584872989_184824094873238_524409_3591550_n.jpg
Existe um
princípio elementar em qualquer democracia republicana: nas discussões
políticas, a Constituição Federal tem que estar acima de tudo, inclusive da
Bíblia, do Corão, do Evangelho Segundo o Espiritismo ou de qualquer outro livro
considerado sagrado. A Carta Magna do nosso país deve ser o texto máximo porque
ela tem que atender a todos, inclusive católicos, muçulmanos, espíritas, outras
denominações religiosas e, inclusive, quem não tem religião e não acredita em
nenhum deus. Quando respeitamos isso, estamos também defendendo a liberdade de
cada um cultuar Deus do jeito que se sentir melhor.
Aborto e liberação
das drogas e outros assuntos polêmicos não podem ser decididos
no Parlamento com base nas convicções desse ou daquele grupo religioso, mas com
argumentos que satisfaçam a todos, inclusive o brasileiro e a brasileira que
não possui crença religiosa nenhuma. Isso é o Estado laico, com suas qualidades
e defeitos, mas é o princípio que nos assegura a liberdade religiosa e a
plenitude do exercício da cidadania.
Particularmente,
nós, espíritas, que prezamos e defendemos a liberdade de consciência como
atributo inerente a cada ser humano, podemos e devemos defender o nosso ponto
de vista, fora dos nossos centros religiosos, com todos os argumentos
jurídicos, sociais e científicos que conheçamos. É assim que se discute em um
regime democrático como cidadãos. Devemos ter argumentos sólidos que satisfaçam
a todos, inclusive aqueles que não acreditam em Deus, na imortalidade da alma,
na lei de causa e efeito, na reencarnação e na comunicação dos desencarnados.
Assim faremos a nossa causa vitoriosa, e não com convicções pessoais, ainda que
sinceras e verdadeiras para nós, mas que não fazem parte do sistema de crença
dos demais concidadãos.
Para os que
tiverem interesse, segue o link do programa “Expressão Nacional”, da TV Câmara,
contendo o vídeo do debate entre o Deputado João Campos, autor da PEC, o
Deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), o cientista político Murilo Aragão e este que
aqui escreve, Jefferson Bellomo, participante do programa na condição de
especialista em história das religiões.
Da minha parte,
não tenho a mínima dúvida que a proposta feita pelo referido parlamentar atenta não só contra o Estado laico, mas, em visão mais ampla, também contra as
bases do Estado Democrático de Direito.