domingo, 21 de abril de 2013


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O ESTADO LAICO E A PEC DA TEOCRACIA
Por Jefferson


                Laicidade ou Laicismo, no âmbito do Direito, é a separação entre o Estado e a religião. É uma conquista da República, pois nos estados absolutistas o rei era, antes de tudo, uma expressão visível da vontade de Deus, e o Estado era um presente divino ao soberano, podendo conduzi-lo da maneira que melhor lhe aprouvesse.

                Com o advento da República e a consequente escolha do líder político por processo democrático e eletivo, a esfera pública e a esfera privada ficaram separadas em definitivo. Uma das consequências dessa separação foi o afastamento do Estado do campo religioso, o chamado Estado laico, isso porque a religião é uma escolha eminentemente privada, que diz respeito a cada indivíduo, não podendo ser imposta por quem quer que seja.

                Quando o Estado, representado por seus governantes e parlamentares, resolve ultrapassar essa barreira, ele invade a esfera de cada um de seus cidadãos. Não porque defenda a crença em Deus, seja que deus for, mas porque quer  impor um código moral religioso a pessoas que possuem profissões de fé diferentes ou que nem fé possuem. Via de regra, desrespeitada a característica laica do Estado, a máquina pública deixa de ser de todos e passa a ser instrumento para impor o código moral/religioso de um grupo. Uma determinada agremiação de fé entende que possui uma procuração de Deus para agir em nome Dele e quer se aproveitar da força das instituições da República para impor o seu ponto de vista a todos os demais cidadãos. Chamamos isso de desrespeito.

                Muitas vezes o argumento do grupo infiltrado em um poder ou em uma instituição republicana, como o Congresso Nacional, por exemplo, é de que possui a legitimidade de uma maioria, por isso há uma vitória democrática. Isso é uma falácia. O Estado Democrático de Direito não se confunde com a ditadura da maioria. Princípios que regem todos os códigos de um país não podem ser subvertidos por uma maioria que quer se impor sobre o direito de outros grupos.

                Recentemente, o Deputado João Campos (PSDB-GO), presidente da Frente Parlamentar Evangélica, propôs uma PEC – Proposta de Emenda Constitucional – para incluir as associações religiosas de âmbito nacional no rol de legitimados para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) e ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs). Segundo o parlamentar proponente, a referida PEC tem por objetivo preservar a liberdade religiosa e a liberdade de culto, que podem ser ameaçadas por normas expedidas pelos agentes estatais. Sob essa hipotética ameaça, uma associação religiosa de âmbito nacional poderia demandar via ADI ou ADC, conforme o caso, diretamente no Supremo Tribunal Federal (STF) na defesa dos seus direitos.

                Não resta dúvida de que a pretendida PEC fere o princípio do Estado laico, pois legitima entidades religiosas a serem sujeitos ativos na mais alta corte jurídica do país para, via Judiciário, atacarem as tarefas normativas das instituições laicas democraticamente consagradas, com o intuito de defenderem o seu interesse particular. Enquanto detentoras de personalidade jurídica, nenhuma igreja, centro ou terreiro, por menor que seja, está desamparado da proteção do Estado, podendo atacar o ato concreto na comarca judiciária de sua cidade. É o chamado controle difuso de constitucionalidade. De outra forma, partidos políticos, Ordem dos Advogados do Brasil e Ministério Público Federal já se encontram no rol dos legitimados para a propositura dessas ações, não precisando nem mesmo ser provocados, solicitados por nenhuma entidade – de crentes ou ateus - para isso. Portanto, além de macular o Estado laico, a PEC é desnecessária.

                Existem muitos assuntos que estão tramitando no Congresso Nacional e que encontram forte oposição da Frente Parlamentar Evangélica. Legalização do aborto, casamento gay, eutanásia, liberação das drogas, criminalização da homofobia e ensino religioso nas escolas públicas são alguns temas em discussão nas sessões dos nossos parlamentares nacionais. Essas discussões interessam a toda sociedade brasileira e devem atender a população de um país como um todo. As idéias controvertidas do pastor/deputado Marcos Feliciano, atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, somente acirraram mais o radicalismo entre os defensores da “moral cristã” – conceito indefinido, pois muda conforme a vertente – e os ativistas de vários grupos de movimentos civis.

A referida PEC, ao contrário do que o Deputado João Campos propagandeia, não pretende se restringir aos problemas de liberdade religiosa e de culto. Acreditar nisso, conhecendo a atuação da chamada “Bancada Evangélica” no Congresso Nacional seria ingenuidade. É um atalho para discutir no STF assuntos civis que o Congresso brasileiro já bateu o martelo. É permitir um novo fórum de debate em assuntos já ultrapassados na esfera legislativa.

                Cada um desses deputados e senadores, eleitos por seus redutos religiosos/eleitorais, pertencem a uma sigla partidária, sigla essa que possui legitimidade jurídica para discutir na Suprema Corte as sua divergências com as normas postas. Não há a mínima necessidade de que as duas maiores religiões do país – Católica e Protestante – se façam representar via aparato estatal no cume do Judiciário pátrio. Dizemos essas duas pois são as melhores representadas e estruturadas para isso. As chamadas seitas e religiões de menor expressão permanecem na marginalidade da nova PEC.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjT21C2pvJcRoHrav2-hyruUcJovyUfFaf7xyy0mUficaEhajmKmndpW2Jj5J6OxlyLaFYSEF6Aj2mE3M5kF7eoFeUWwW70Fd3wimMFc4RPCoIFhABC7K1y3VAlgijmT_CHFRyCFkniVjSv/s1600/178999_184826584872989_184824094873238_524409_3591550_n.jpg


                Existe um princípio elementar em qualquer democracia republicana: nas discussões políticas, a Constituição Federal tem que estar acima de tudo, inclusive da Bíblia, do Corão, do Evangelho Segundo o Espiritismo ou de qualquer outro livro considerado sagrado. A Carta Magna do nosso país deve ser o texto máximo porque ela tem que atender a todos, inclusive católicos, muçulmanos, espíritas, outras denominações religiosas e, inclusive, quem não tem religião e não acredita em nenhum deus. Quando respeitamos isso, estamos também defendendo a liberdade de cada um cultuar Deus do jeito que se sentir melhor.

                Aborto e liberação das drogas e outros assuntos polêmicos não podem ser decididos no Parlamento com base nas convicções desse ou daquele grupo religioso, mas com argumentos que satisfaçam a todos, inclusive o brasileiro e a brasileira que não possui crença religiosa nenhuma. Isso é o Estado laico, com suas qualidades e defeitos, mas é o princípio que nos assegura a liberdade religiosa e a plenitude do exercício da cidadania.

                Particularmente, nós, espíritas, que prezamos e defendemos a liberdade de consciência como atributo inerente a cada ser humano, podemos e devemos defender o nosso ponto de vista, fora dos nossos centros religiosos, com todos os argumentos jurídicos, sociais e científicos que conheçamos. É assim que se discute em um regime democrático como cidadãos. Devemos ter argumentos sólidos que satisfaçam a todos, inclusive aqueles que não acreditam em Deus, na imortalidade da alma, na lei de causa e efeito, na reencarnação e na comunicação dos desencarnados. Assim faremos a nossa causa vitoriosa, e não com convicções pessoais, ainda que sinceras e verdadeiras para nós, mas que não fazem parte do sistema de crença dos demais concidadãos.

                Para os que tiverem interesse, segue o link do programa “Expressão Nacional”, da TV Câmara, contendo o vídeo do debate entre o Deputado João Campos, autor da PEC, o Deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), o cientista político Murilo Aragão e este que aqui escreve, Jefferson Bellomo, participante do programa na condição de especialista em história das religiões.



                
Da minha parte, não tenho a mínima dúvida que a proposta feita pelo referido parlamentar atenta não só contra o Estado laico, mas, em visão mais ampla, também contra as bases do Estado Democrático de Direito.


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