quinta-feira, 7 de março de 2013

MITOS NÃO SÃO MENTIRA MAS...  SERÃO
 VERDADE?

Por Douglas.

Antes de tudo quero começar falando a vocês, caros leitor e leitora, um pouco a respeito da linha do horizonte. A linha do horizonte é aquela onde se encontram, para o seu olhar, o céu e a terra quando você olha muito distante. Ou o céu e o mar quando você está na beira da praia ou navegando. Mas o que isso tem a haver com o nosso assunto?

É que essa bela imagem, a do horizonte, é utilizada por um grupo de cientistas sociais de várias disciplinas para definir uma coisa chamada por eles de Horizontes Culturais. E essa definição é muito importante no contexto de nosso pequeno artigo para esse blog.

Um Horizonte Cultural ou Civilizacional é o conjunto de valores, significados, conceitos, idéias e sonhos experienciados por uma civilização em todos os aspectos socio-culturais possíveis de se identificar nela, junto com seu desenvolvimento tecnológico, econômico e político. É, evocando-se a imagem, até onde as pessoas que vivem em uma civilização conseguem enxergar dentro do mundo em que vivem, respondendo assim às necessidades de tempo e lugar de suas experiências.

O filósofo Ken Wilber, um dos maiores pensadores do século XX, utiliza uma outra palavra para se referir aos Horizontes Culturais. Ele utiliza o termo cosmovisão, que é a palavra que passaremos a usar à partir daqui. Sintetizando os estudos de diversos pesquisadores em seu livro Uma Breve História do Universo – de Buda a Freud, ele descreve cinco cosmovisões básicas e claramente distintas na história humana, a saber:

  •  a arcaica, de desenvolvimento tecnológico/econômico forrageiro e organização social tribal;
  •  a mágica, de desenvolvimento tecnológico/econômico horticultor e organização social tribal e de aldeias;
  •    a mítica, de desenvolvimento tecnológico/econômico agrário e organização social em Estados primitivos;
  •  a racional, de desenvolvimento tecnológico/econômico industrial e organização social em nações-Estados;
  •   e a existencial, de desenvolvimento tecnológico/econômico informacional e organização social planetária.

É importante que eu lhes diga nesse momento que à medida que uma sucede a outra, com seus períodos de transição, a cosmovisão seguinte transcende a anterior, NUNCA anulando o que vem antes, mas transcendendo a primeira, indo além  ressignificando e incorporando os elementos da que lhe antecede.

E o que isso tem a haver com nossas considerações sobre mitos, mitologia e o seu valor presente em nossas sociedades? É que ao assimilar os elementos constitutivos dos Horizontes Culturais precedentes, nossa cosmovisão existencial tem de lidar com o conteúdo que veio antes e, repito, dar novos significados e valores a esse conteúdo.

Isso é muito importante! E assim o é porque não somos seres isolados de nosso passado ancestral. Assim como carregamos as marcas de nossos estágios evolutivos passados na esfera física, com sua perspectiva mineral, vegetal e animal, carregamos igualmente as forças psíquicas e espirituais que nos precedem, para que possamos evoluir, transcendendo.

Sendo assim, conhecer estas perspectivas em seus aspectos básicos e gerais nos ajudará a discernir e compreender a razão de os mitos e das mitologias serem tão importantes até hoje, sobretudo quando tratamos do tema religião, quando não raro o que se trabalha em nossos corações e mentes nesse assunto é feito de conteúdos e invólucros mentais que assimilamos, quase sempre de modo inconsciente, de acordo como doutor Carl Jung como verdades inquestionáveis, no pior e mais negativo sentido que é dado ao termo dogma.

Vamos então dar uma rápida olhada no que é que o filósofo Ken Wilber nos traz sobre o horizonte mítico-agrário. Em resumo apertado, podemos verificar que nessa cosmovisão surgida entre 4.000 a 2.000 anos A.E.C., substitui-se a enxada pelo arado, muito pesado e difícil de manusear, provocando um esforço que, uma vez executado, permitia uma produção de alimentos muito maior do que a fase anterior, a mágico-horticultora.


Mas nisso tem-se um preço duro a se pagar: a mulher deixa de ser um membro produtivo da comunidade, se tornando o membro exclusivamente reprodutivo. Isso se dá porque uma mulher grávida pode cavucar a terra com uma vara ou uma enxada para semear, mas se ela manuseia o arado, os índices de aborto começam a subir assustadoramente, o que rapidamente foi percebido por ambos os sexos. Sendo assim, os homens param de ser caçadores e coletores em tempo integral e as mulheres tem de se recolher ao lar e à criação dos filhos.

Tal fato é deveras significativo em vários aspectos. Primeiro, é aí que surge a estrutura do patriarcado, em substituição à divinização do feminino. Os homens aram a terra e fazem as guerras, logo, começam a dar as ordens na organização socio-política. Prova disso é que as deusas adoradas por todos desde então passam a ser substituídas por deuses como o elemento provedor espiritual do agregamento comunal. Conforme Wilber, em todo o planeta Terra mais de 90% das sociedades agrárias nesse momento adora deuses masculinos no lugar de suas contrapartes femininas.

O mitólogo Joseph Campbell, no volume 2 de sua obra As Máscaras de Deus descreve que, então, as deusas adoradas passaram a ser vistas como as consortes, as esposas dos deuses masculinos, submissas e sujeitas a esses tal qual as mulheres estavam sujeitas nesse Horizonte Civilizacional aos homens, provedores e defensores de todos da comunidade.

Porém há mais a ser dito. Com a abundância produtiva de alimentos crescendo, muitos homens – sempre homens – começaram a se especializar em outras atividades, tais como o comércio, a guerra, a contemplação, etc, permitindo com isso o surgimento de uma sofisticação não encontrada no período anterior. De fato, a moeda de troca, o comércio, a metalurgia, as guerras, as matemáticas e o culto religioso elaborado surgem nesse momento na história humana, com toda a gama de complexidade que a interação desses elementos acarreta.

Um exemplo disso é a percepção de que ao invés de uma Grande Deusa ou Grande Mãe a tudo reger na biosfera terrestre, haveriam forças outras distintas, sobretudo masculinas, a ocupar um espaço sagrado próprio e a serem levadas em consideração pelos humanos. Começam assim a nascer os deuses diversos, que interagem entre si e com os seres humanos, imiscuindo-se em seus assuntos e influenciando-os para a melhor ou para a pior – e geralmente o encontro com uma divindade era para a pior para a parte mais fraca, nós – tão bem organizados em uma hierarquia celeste – do grego hyeros e arché: poder sagrado – quanto o eram os Estados primitivos.

O aspecto da contemplação é particularmente importante para nossos estudos. O Homem passa a ser nesse período, de modo mais profundo e abrangente que no estágio evolutivo anterior, um contemplativo, um teorético. Começa a fazer teoria, palavra que vem do grego theyon oraos, isto é, vejo, contemplo o divino, conforme explicação da doutora Karen Armstrong em sua obra Uma História de Deus. Ora, o Homem desse período era um observador atento daquilo que acontecia ao seu redor e dentro de si, uma vez que, geralmente analfabeto, tinha de prestar atenção ao que acontecia dentro e fora de si como uma questão de sobrevivência, fato que o Homem contemporâneo tem dificuldade para vivenciar em uma sociedade de consumo fácil e de espetáculos onde matar o tempo em lazer é o que significa bem-estar para muitos.

Mas o ser humano do Horizonte Agrário-mítico não podia se permitir ser assim. E quando ele se torna um teorético, um contemplativo, ele enxerga que dada a multiplicidade de forças ao seu redor e dentro de si, forças essas que não raro poderiam com muita facilidade lhe tirar a paz, o sossego, a saúde e mesmo a vida, ele precisa posicioná-las em seu devido lugar em relação a si. E esse lugar é acima de si mesmo, como força, como poder, como um deus com quem ele teria de interagir do mesmo jeito que o fazia com os outros homens: dialogando com eles, para tentar um entendimento; negociando com eles, para tentar um concerto de vontades; se submetendo em absoluto a eles, para aplacar a sua ira ou, em casos raros e extremados, guerreando contra eles com a ajuda de um ou mais deuses superiores, para que o status quo ante de harmonia pudesse ser restabelecido.   

E mais: o ser humano, por ser humano, precisa dar sentido às coisas que ele vivencia e ao que ele é para ser pleno, para estar satisfeito com a vida e seguir em frente. Sua natureza é dinâmica uma vez que ele interage com a natureza ao seu redor, com sua natureza íntima e entre si. Ao enxergar a multiplicidade de deuses, sua harmoniosa concatenação no arranjo de tudo o que existe – chamado por exemplo pelos gregos de kósmos, ordem – e as possibilidades que advém desse conhecimento em sua vantagem, o Homem passou também a se dedicar a explicar, com sua acurada observação das coisas e sua contemplação, a origem do mundo, dos deuses, do Homem e de todo o cosmo. Com isso nascem o mito e a mitologia.

Efetivamente, a palavra mythos em grego significa: conto, estória, narrativa. Mas não estamos falando aqui de uma narrativa qualquer. Os contos dos irmãos Grimm também são contos, mas não são mitos. Ninguém fala do mito da gata borralheira, do mito da chapeuzinho vermelho, etc. Sendo assim, o que distingue os mitos de estórias populares? É que o mito é uma narrativa sagrada e explicativa da origem de algo: o cosmo, os deuses, o Homem, uma planta, uma estrela ou constelação e por aí vai. Essa narrativa sagrada geralmente - mas não exclusivamente - estará acompanhada de um ou mais significados simbólicos, perceptíveis ou não pelo ouvinte do mito.

Para melhor nos fazermos entender, passo a citar o mitólogo e estudioso de religiões comparadas Mircea Eliade em sua obra Mito e Realidade:

“A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural”.

Simplificando então: o mito é uma narrativa de origem de algo que se dá em razão de uma manifestação do sagrado ou do sobrenatural na ordem das coisas, explicando assim sua origem e dando sentido para a existência desse algo. Aqui cabe algo importante a se dizer: os mitos não têm a intenção ou mesmo pretensão de ser um estudo objetivo, científico do universo e do Homem. Efetivamente, para o ser humano artesão de mitos, o universo não é uma coisa a ser estudada, medida, dissecada, decomposta, recomposta e reproduzida. O universo para o artesão de mitos não é um objeto, mas sim uma realidade vívida na qual se está inserido. E mais importante ainda: o universo é uma realidade na qual o Homem deve encontrar o seu lugar para que nunca ele se perca nos exageros para mais ou para menos, no descomedimento definido pelo termo grego hybris.

Essa é a posição dos filósofos e mitólogos Jean-Pierre Vernant e Luc Ferry, nas obras A Sabedoria dos Mitos Gregos e O Universo, Os Deuses, Os Homens. Se o ser humano escutar os mitos e daí prestar atenção ao mundo dentro de si e ao seu redor, ele vai ver que, à parte a dor causada por calamidades naturais, os problemas humanos praticamente todos são os problemas de hybris/descomedimento, de descontrole, quando tenta ser menos do que é – um animal – ou mais do que é – um deus.

Sendo assim, escutar os mitos era se conectar com uma sabedoria prática de vida que mostrava ao Homem seu lugar no mundo, lhe expunha a origem das coisas e dava sentido à sua existência, tudo à partir dos mitos. Os grandes momentos da vida: nascimento, crescimento, casamento, reprodução, trabalho, lutas, doenças e morte, enfim, tudo estava concatenado em uma rede de significados e valores.

Agora você pode se perguntar: se os mitos são tão importantes assim, por que é que não os utilizamos mais? A abordagem da Filosofia e das Ciências não fazem o mesmo que os mitos, mas desta vez dizendo tudo às claras, sem linguagem simbólica, sem significados ocultos, sem apelos imaginativos e imagéticos? Não é tudo mais fácil agora? Precisamos ainda dos mitos na era existencial-informacional-planetária?

Bem, vamos por partes. Lembra que eu lhe disse no início desse artigo que uma cosmovisão transcende a outra e que transcender não é eliminar o anterior porém, ao contrário, incorporá-la e ir além? Pois é. A cosmovisão ou Horizonte Civilizacional existencial-informacional-planetário não existe ignorando as conquistas humanas, sejam elas materiais ou espirituais do passado mas, muito pelo contrário, se valendo dela em outros contextos, dando-lhes outros significados e, acima de tudo, evidenciando seu real valor. Isto ocorre inclusive no que diz respeito à mitologia.

Agora outra coisa: quem foi que disse que não usamos mais os mitos? Certamente nunca fui eu! Não só continuamos a usar os mitos antigos como inclusive criamos mitos novos! No que diz respeito a esses últimos, posso lhe indicar de preferência a leitura do volume 4 da série já citada, As Máscaras de Deus, do mitólogo Joseph Campbell. Trata-se de um estudo pormenorizado de como a mitologia ainda é importantíssima nos dias de hoje justamente porque continua a ser produzida pelo Homem, em circunstâncias bem variadas por sinal.

Vamos a alguns exemplos: Adolph Hitler, o líder da Alemanha Nazista, resgatou do passado germânico de seu povo o mito dos Hiperbóreos, uma civilização que teria vivido há muito tempo no planeta na área que hoje é o círculo polar Ártico e que seria, no seu entendimento, os reais antepassados dos povos germânicos. O mito diz que eram a raça branca alegadamente pura e superior, inclusive possuindo poderes sobrenaturais em razão de sua pretensa pureza. Hitler e o staff místico da liderança nazista entendiam que, se conseguissem restaurar a pureza racial, cultural e política dos povos germânicos, que os Hiperbóreos retornariam na figura de seu povo e, recuperando seus poderes, seriam invencíveis. É assim que descrevem essa faceta mística de Hitler os pesquisadores J. H. Brennan em Reich Oculto e Paul Roland em Os Nazistas e o Ocultismo.
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Outro exemplo é a mitologia socialista criada em torno das premissas do filósofo e cientista político alemão Karl Marx. Em resumo apertado, pode-se dizer que a base de seu pensamento é: não há Deus, não há deuses, não há mundo espiritual, numênico, mas apenas o mundo material, fenomênico. A história é a interação dialética de duas forças muito materiais: a classe social dos que mandam e detém o poder e a classe social dos que obedecem e são explorados. Uma vez arregimentada a classe dos explorados para tomar o poder e derrubar os exploradores, pode-se criar uma nova era de paz, segurança e prosperidade em torno do ideal do igualitarismo. E isso estaria prestes a acontecer pois a estrutura econômico-financeira hoje em vigor com sua super estrutura sócio-política, a do Capitalismo e do Liberalismo político estaria tão debilitada que é uma questão de tempo até que ela chegue à ruína e tudo possa mudar.

Voltando ao ponto anterior a esses dois exemplos, resta a pergunta: será que ainda continuamos a usar mitos antigos atualmente? A resposta não pode ser menos objetiva: sim! E de modo poderosíssimo. O maior exemplo disso se encontra no contexto das grandes religiões que continuam vivas em nosso planeta, tais como o Cristianismo, o Islamismo, o Judaísmo, as diversas vertentes do Hinduísmo, o Budismo e por aí vai. Em todas elas e em muitas outras o mito é parte constituinte e estrutural da religião, sendo mesmo sua essência.

E é aqui que nossa verve espírita começa a se apresentar de modo mais explícito. Tomemos por estudo os dois casos que mais se aproximam culturalmente da Doutrina Espírita, por lhe antecederem e fornecerem subsídios de significados e valores, a saber, o Judaísmo e o Cristianismo. As Escrituras Sagradas Hebraico-Aramaicas, do Judaísmo e as Escrituras Gregas Cristãs, do cristianismo, enfeixadas no exemplar de nossas Bíblias Sagradas como antigo e Novo Testamento são um conjunto de escritos de autores e épocas diferentes que reúnem uma vasta gama de tipos de literatura: poemas, hinos religiosos, meditações filosóficas, textos de história sagrada, profecias e... mitos! Mitos, alguém pode questionar? Sim, mitos! Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.

Certamente tal visão não é corroborada pela quase totalidade dos cristãos católicos e protestantes uma vez que, conforme nos explica Mircea Eliade no já citado Mito e Realidade, tanto judeus quanto cristãos já bem no início do estabelecimento de seu cânon de textos sagrados, consideravam seus escritos sacros como história simples, literal e direta e os textos sagrados dos outros povos como sendo mitológicos. E aqui, já divulgavam o termo mitológico como sinônimo de estórias inventadas pela imaginação, tal qual o termo é conhecido hoje, em contraposição aos alegados fatos inquestionáveis de suas Bíblias Sagradas.

Todavia, a análise de seu material sacro indica muito claramente hoje que, do ponto de vista da historiografia, da Antropologia Arqueológica, da Sociologia aplicada ao passado dos povos do Levante e da região mediterrânea, dos estudos de Mitologias Comparadas, de Religiões Comparadas e de Simbologia, estamos sim lidando não com fatos históricos porém sim com mitos, belos e poderosos mitos, usados por essas duas grandes religiões, a judaica e a cristã com o mesmo sentido dos povos antigos: dar sentido à vida, mostrar ao Homem o seu lugar no universo, explicar a origem de tudo e para onde se dirige a humanidade. São, na imagem de Jesus de Nazaré em  Mateus 9:14-17, Marcos 2:18-22 e Lucas 5:33-39, vinho novo em um odre velho e, se não forem respeitados e considerados como os bons mitos que são, romperão os odres dogmáticos nos quais foram colocados.

Mas considerar um mito como um fato histórico não é o maior, digamos, descomedimento ou hybris literário por parte dessas religiões. O problema maior se situa no fato de doutrinas, conceitos e valores serem ensinados para os seres humanos como verdades imutáveis em razão da leitura equivocada dos textos sacros mitológicos como história, criando-se assim uma situação de desconforto entre muitos dos fiéis em diversos aspectos de sua vida pois, não querendo abandonar o aconchego espiritual de seus grupos religiosos, ao mesmo tempo não podem aceitar a literalidade das Escrituras Sagradas frente ao avanço das pesquisas científicas e filosóficas que dissecam as religiões e os fatos aos quais elas se referem, dando uma visão muito mais precisa e exata das coisas.

E o problema fica maior quando muitos desses fiéis não encontram um pouso seguro e sadio para seus espíritos e resvalam para as tristes conseqüências de uma vida atéia, materialista e, o pior de tudo, hedonista. Tudo em parte porque os mitos não são respeitados e estudados como tais, perdendo assim sua poderosa carga simbólica e seu dinamismo imaginativo em nossas consciências, dando-nos também a força para seguirmos em nosso crescimento como seres humanos.


Diante disso tudo, a Doutrina dos Espíritos mais do que nunca nos apresenta, já desde o século XIX, quando o materialismo e o ateísmo começavam a assumir dimensões preocupantes, uma visão diferente, ampla e transcendental das sagradas escrituras míticas judaico-cristãs. Por exemplo, referindo-se ao mito judaico da criação à luz das ciências de sua época e da Doutrina dos Espíritos, o mestre Allan Kardec comenta, no item 59 de O Livro dos Espíritos (tradução de Evandro Noleto Bezerra) que:
“Dever-se-á por isso concluir que a Bíblia é um erro? Não; mas que os homens se equivocaram ao interpretá-la”.
Novamente, na questão de número 480 do mesmo livro, perguntados os Espíritos de Luz sobre uma passagem do Evangelho, irão muito além da pergunta ao responder que:
“Uma coisa pode ser verdadeira ou falsa conforme o sentido que se der às palavras. As maiores verdades podem parecer absurdas quando se olha apenas a forma e quando se toma a alegoria pela realidade. Compreendei bem isto e guardai-o, pois é de aplicação geral”.
Igualmente, tratando da resposta à pergunta 521 sobre o papel dos Espíritos Superiores no estímulo e proteção ao progresso das Artes, o Codificador irá comentar, em um tópico altamente pertinente aos estudos de mitologia, o que se segue:
“Os Antigos haviam feito desses espíritos divindades especiais. As musas não eram senão a personificação alegórica dos Espíritos protetores das ciências e das artes, como os deuses Lares e Penates simbolizavam os Espíritos protetores das famílias. Entre os modernos, as Artes, as diferentes indústrias, as cidades, os países também têm os seus patronos ou protetores, que nada mais são do que Espíritos superiores, embora sob outros nomes”.
Para tornar mais explícita ainda as explicações espíritas pertinentes aos fenômenos mitológicos, Kardec questiona na pergunta 537:
“A mitologia dos Antigos se fundava inteiramente sobre as idéias espíritas, com a única diferença de que consideravam os Espíritos como divindades. Representavam esses deuses ou esses Espíritos com atribuições espirituais. Assim, uns eram encarregados dos ventos, outros do raio, outros de presidir à vegetação etc. Essa crença é destituída de fundamentos?
Tão pouco destituída de fundamentos que ainda está muito aquém da verdade”.

Finalmente, o tema é pontuado de modo claro e definitivo na pergunta de número 668, com a resposta dos Espíritos de Luz e o comentário abalizado do Codificador:

"Por se terem produzido em todos os tempos e serem conhecidos desde as primeiras idades do mundo, os fenômenos espíritas não terão contribuído para a difusão da crença na pluralidade dos deuses?
 "Sem dúvida. Como os homens chamavam deus tudo o que era sobre-humano, para eles os Espíritos pareciam deuses. É por isso que quando um homem se distinguia dos demais, por suas ações, pelo seu gênio ou por um poder oculto que o povo não compreendia, faziam dele um deus e lhe rendiam culto após a morte".

Allan Kardec comenta na mesma questão: 

"Entre os antigos, a palavra deus tinha uma acepção muito ampla. Não significava, como hoje, uma personificação do Senhor da Natureza. Era uma qualificação genérica, que se dava a todo ser colocado acima das condições da Humanidade. Ora, tendo as manifestações espíritas lhes revelado a existência de seres incorpóreos que agiam como forças da Natureza, eles os chamaram deuses, como nós os chamamos Espíritos. Simples questão de palavras, com a diferença de que, em sua ignorância, mantida intencionalmente por aqueles que nisso interesse, eles construíram templos e altares muito lucrativos, ao passo que hoje os consideramos como simples criaturas como nós, mais ou menos perfeitas e despojadas de seus envoltórios terrenos. Se estudarmos atentamente os diversos atributos das divindades pagãs, reconheceremos sem dificuldade todos os atributos dos nossos Espíritos, em todos os graus da escala espírita, seus estado físico nos mundos superiores, todas as propriedades do perispírito e o papel que desempenham nas coisas da Terra.

"Vindo iluminar o mundo com a sua luz divina, o Cristianismo não podia destruir uma coisa que está na Natureza, mas fez que a adoração se voltasse para aquele a quem é devida. Quanto aos Espíritos, a lembrança deles se perpetuou sob diversos nomes, conforme os povos, e suas manifestações, que jamais deixaram de produzir-se, foram interpretadas de maneiras diferentes e muitas vezes exploradas sob o domínio do mistério. Enquanto a religião via nessas manifestações fenômenos miraculosos, os incrédulos os consideravam embustes. Hoje, graças a estudos mais sérios, feitos em plena luz, o Espiritismo, liberto das idéias supersticiosas que o obscureceram durante séculos, nos revela um dos maiores e mais sublimes princípios da Natureza”.
Eis aqui uma dimensão muito diferente e bem mais abrangente dos mitos e da mitologia para o Homem do Horizonte Cultural existencial-informacional-planetário! Uma dimensão expandida, onde os estudos mitológicos podem conviver de modo muito apropriado com as pesquisas das Ciências, com as sínteses racionais e elucubrações das modernas Filosofias e, não menos importante, com a tão necessária ressignificação das Religiões frente às necessidades deste tempo, em todo o planeta Terra. Tal visão, começada a ser apresentada à Humanidade em o Livro dos Espíritos, segue sendo mais explicada em notáveis obras da Doutrina Espírita, tais como O Problema do ser, do destino e da Dor, do maior filósofo do Espiritismo depois de Kardec, o inolvidável Léon Denis; também com as obras À Caminho da Luz e O consolador, de Emmanuel, e Evolução em Dois Mundos, de André Luiz, todos psicografados pelo insigne médium espírita Chico Xavier. Tudo isso para nos mostrar como os mitos são verdade sim, mas verdade em seu contexto imaginativo, criativo, contemplador, poético, sagrado, contado e cantado, como o eram pelos antigos aedos gregos, além dos aedos de muitos outros povos e civilizações.

Muito teríamos a explorar sobre o maravilhoso mundo mitológico, inclusive nos estudos da psique humana começados pelo doutor Sigmund Freud, continuados e expandidos tremendamente pelo doutor Carl Gustav Jung e seus discípulos, além de tantos outros pensadores. Mas por enquanto paramos aqui, e nos despedimos de vocês querido leitor e querida leitora, com uma citação de um discípulo do doutor Jung, o já mencionado Joseph Campbell, na obra O Poder do Mito, uma série de entrevistas transcritas em livro pelo jornalista Bill Moyers:

CAMPBELL: Dizem que o que todos procuramos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior de nosso ser e de nossa realidade mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos. É disso que se trata, afinal, e é o que essas pistas nos ajudam a procurar, dentro de nós mesmos.
MOYERS: Mitos são pistas?
CAMPBELL: Mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana.
MOYERS: Aquilo que somos capazes de conhecer e experimentar interiormente?
CAMPBELL: Sim”.









2 comentários:

  1. Reflexão primorosa. Argumentativa, informativa. A nos fazer, sobretudo, buscar as potencialidades do espírito. Grato!

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  2. Caros Douglas e Jefferson.
    Desculpem-me por fugir do texto primoroso sobre mitos, mas não sei exatamente onde "conversar" com voces sobre o tema Jesus Histórico, que é realmente muito interessante e o tempo da aula acaba ficando exíguo para satisfazer a ânsia dos alunos em perguntar ou comentar o que foi apreendido a partir dos textos e da aula. Nesse sentido, estou fazendo este post, na esperança de que um de vocês tenha tempo para comentar e corrigir eventuais distorções da minha compreensão a respeito do assunto.
    Entendi, a partir do texto do Roberto Pompeu de Toledo, na Veja de 1992, das suas respostas às perguntas que estavam no blog e da entrevista com o professor Gabriele Cornelli, que talvez nunca possamos remontar de maneira completa o “Jesus real” e que o Jesus que emerge das pesquisas históricas – o “Jesus histórico”, a partir da análise não contaminada pelo sectarismo religioso dos evangelhos canônicos, dos manuscritos do Mar Morto e de outras pesquisas arqueológicas, ambientando adequadamente a sua figura à época, local e circunstâncias em que Ele viveu, esclarece muito melhor o que Jesus não pode ter sido, desmontando um pouco do imaginário de cada um, mas também com discordâncias entre os historiadores, demonstrando que as conclusões que conduzem à hipótese de quem era Jesus – o Jesus Histórico, se apoiam ainda muito em achados fragmentados, que levam a inferências em sequência e, como consequência inevitável, conclusões diferentes nos detalhes, como é o caso da educação e das condições socioeconômicas da família de José, do tempo de pregação, do convívio ou não com determinada seita e outros que a minha ignorância não permitiu captar.
    Não faz sentido, no momento, comentar a respeito da transformação de Jesus em Cristo e Deus (a terceira das “personalidades de Jesus”, fora o Jesus individual), mas seu exemplo e seu Evangelho, a “Boa Notícia” que nos deixou, moldou o pensamento ocidental a partir dessa transformação, apesar das deformações que a institucionalização causou, a partir do século IV DC. Estou errado nesta conclusão?
    O problema que surge é de credibilidade. Será que tudo o que foi comentado dos Evangelhos, com suas falhas históricas, sua autoria contestável e a época real de suas redações comprometem o conteúdo como um todo? Acredito (opinião pessoal) que se separarmos adequadamente o anúncio da figura de Jesus Cristo – a publicidade que permitiu sua penetração no mundo romano, dos ensinamentos morais e do estabelecimento definitivo do conceito de vida no mundo espiritual, o problema se resolve.
    Não foi mais ou menos isso que Kardec fez, ao elaborar o Evangelho Segundo o Espiritismo?
    Um abraço,
    Adolfo Simon

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